Cidadão Zuckerberg

 (Uma breve análise dos filmes "Cidadão Kane" e "A Rede Social")

Recentemente assisti ao filme A Rede Social (Social Network), de David Fincher. Um filme que expressa como poucos as idiossincrasias do nosso tempo, essa pós-modernidade tão volátil, confusa e intangível. Tempos onde os valores e as certezas de outrora estão sendo desconstruídos. Nesse sentido, poderia citar pelo menos dois outros filmes: "Clube da Luta" (também de Fincher) e "Amor sem Escalas" – cujo único defeito é esse medonho titulo que ganhou no Brasil. Outra faceta da obra é o fato de que, tal como nas outras obras-primas Cidadão Kane, Assim Caminha a Humanidade e Sangue Negro, o protagonista (Zuckerberg) desse filme encarna o arquétipo do herói americano (e americano aqui se refere apenas aos estadunidenses), do self made man que, contrariando todas as expectativas e num ímpeto incansável e individualista, vencerá e prosperará.

Tal mito heróico encarna os ideias no Neoliberalismo: a concorrência, a livre iniciativa e o individualismo, em contraposição aos ideias de coletividade e de mútua colaboração. Porém, o que me chamou a atenção nesta obra do diretor de "Seven" e "Clube da Luta" é a influência que ela carrega da obra seminal de Orson Welles: Cidadão Kane. Nesta, o protagonista é um homem que – poderíamos dizer – conquistou o mundo, mas tudo o que queria era uma simples coisa que havia perdido no passado: sua “rosebud”, tão representativa da infância e da inocência perdidas.


Podemos ainda recorrer às teorias psicanalíticas para compreender os protagonistas de ambos os filmes e suas motivações. Segundo Lacan, a grande questão deixada na obra de Freud é a descoberta de que, diferentemente dos demais animais existentes na terra, o ser humano (animal racional, hominídeo, primata, mamífero) não possui um objeto fixo para sacia-lhe o desejo sexual. Para Freud, conceito de "objeto" era usado para designa uma pessoa, um objeto ou uma atividade capaz de atrair e satisfazer os desejos e/ou as pulsões instintivas do indivíduo. De acordo com Freud, o primeiro objeto na vida do bebê capaz de satisfazer seu desejo e/ou sua pulsão instintiva era o seio materno. Posteriormente, o objeto amplia-se e desloca-se, do seio, para abranger a mãe. E, à medida que a criança cresce, o objeto ampliado e deslocado continuamente.

Se recorrermos à outra teoria freudiana, a do Complexo de Édipo, veremos que todos nós teríamos desejos sexuais (instintivos, portanto) reprimidos em relação aos nossos pais. Logo, tendo essa hipótese em mente, o que seria o desejo de Kane pelo poder e pela acumulação de objetos (incluindo aqui, as pessoas, os amigos, os quais ele via assim, como meros objetos colocados ao seu dispor), senão uma projeção do desejo edipiano pela mãe, com a qual a relação fora tão precocemente cortada? E o que é o posterior desejo de Zuckerberg por popularidade e poder senão uma transferência ou tentiva de compensação de seu desejo pela ex-namorada Erica Albright (interpretada por Rooney Mara), que, por sua vez se constituía numa transferência ou substituição daquele primitivo e infantil desejo edipiano?

Deixando as freudianas e tomando como base os estudos de Lacan, conseguiremos jogar um pouco mais de luz sobre essa questão. Lacan, partindo dos pressupostos legados por Freud, desenvolveu a teoria do 'objeto a'. Segundo ele, é a ausência de um objeto fixo de desejo que provoca em nós, humanos, civilizados, a reelaboração constante de nossos desejos e contínua re-transferência de seus objetos. Por não termos um objeto de desejo previamente determinado, usamos, para suprir esse vazio, diferentes e diversos objetos que, por sua vez, nos são oferecidos pela cultura, não pela natureza. A cultura é quem nos diz (ou dita) o que querer, o que ansiar, o que desejar.

O conceito de objeto a é criado por Lacan para materializar essa ausência de um objeto  de desejo natural previamente estipulado. Nós sempre estamos nos relacionando com objetos parciais, isto é, com representações incompletas de pessoas, coisas e situações (é como na fenomenologia de Husserl), e, na tentativa de construir objetos totais, acabamos por preencher as lacunas com idealizações. Assim, podemos concluir que, no fundo, todos nós não passamos de crianças que desejam ardentemente o seio da materno porque o consideram uma parte perdida de si mesmos. E é  exatamente esse parte que falta de nós mesmos que buscamos, em vão, compensar por meio da posse de outros objetos, ao longo de toda a nossa vida. Para Lacan, esse pedaço perdido de nós mesmo é um objeto que, precisamente por sua inevitável ausência, se faz dolorosamente presente. É o objeto a.

No caso do filme de Fincher, essa “rosebud” assume a forma da namorada do protagonista, que lhe abandona logo na cena inicial, e que ele fica a contemplar, solitário e triste, na cena final da película. Ele também, por assim dizer, conquistou o mundo, mas tudo o que parecia realmente querer é aquele amor que perdeu, aquele botão de rosa que um dia teve em suas mãos, que agora encontram-se vazias (apesar de toda a sua fortuna). Outra semelhança com a obra de Welles é a narrativa não linear, bem como sua montagem complexa. Também evoca ao filme de Welles a facilidade com a qual a personagem Mark Zuckerberg (interpretado por Jesse Eisenberg) trai os poucos amigos que tão arduamente conquistou, e a maneira como ele vê as pessoas e as próprias relações sociais: objetos que podem ser comprados, mercadorias cambiáveis e descartáveis. 

Em Cidadão Kane, o protagonista compra um jornal decadente e o transforma num sucesso, com noticias sensacionalistas e manipulação dos fatos. Ao ver a foto dos jornalistas que trabalham num jornal concorrente, ele não vacila: oferece-lhes dinheiro os contrata para trabalhar em seu jornal. Casa-se, divorcia-se, casa-se novamente. Constrói uma gigantesca mansão, Xanadu, nela um mundo privado em particular, com zoológico, parque, museu... Começa a comprar obras de arte, pintura, esculturas, móveis antigos... Acumulando cada vez mais "coisas" no intuito inútil de preencher algum vazio. 

Em A Rede Social o protagonista é um jovem, considerado nerd, solitário, impopular e sem muitos amigos. Um dia ele tem a ideia de criar - junto com o único amigo eu possuía - um site de relacionamentos onde as pessoas pudessem se conhecer, paquerar e estabelecer uma rede de amigos. A ideia se torna uma enorme sucesso, ele começa, da noite pro dia, a ganhar notoriedade em sua faculdade. Neste site, o Facebook, ele começa a ter cada vez mais "amigos", apesar de, no mundo real, ele acabar traindo, magoando e perdendo o único amigo que realmente tinha. E o que são esses amigos virtuais que ele - e nós - vamos acumulando, senão ilusões, miragens, que nos enganam e, apesar da promessa, não nos satisfazem?


Em ambos os filmes, por fim, a conclusão parece ser a mesma: se para conquistar o mundo, tivermos que, no caminho, renunciar ao que realmente amamos, estaremos renunciando a nós mesmos, e no final nos acharemos perdidos. A acumulação de riquezas ou bens materiais não nos traz completude, felicidade ou satisfação, mas nos frustra e nos torna mais vazios.


A REDE SOCIAL
(The Social Network)
Data de lançamento: 1 de outubro de 2010 (EUA)
Direção: David Fincher
Elenco: Jesse Eisenberg, Rooney Mara, Andrew Garfield, Justin Timberlake
Roteiro: Aaron Sorkin
Duração: 121 min.
Música: Trent Reznor e Atticus Ross
Vencedor de 3 Oscar
Melhor Roteiro Adaptado
Melhor Edição
Melhor Trilha Sonora

Comentários

  1. Ainda quero ver por aqui comentários sobre "Laranja Mecânica" e "Apocalipse Now"...

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