A Rainha Virgem

Em 1998 estrou nos cinemas o filme Elizabeth (1998), dirigido pelo anglo-indiano Shekhar Kapur e protagonizado pela australiana Cate Blanchett. Era mais um entre as dezenas de filmes a retratar a monarca inglesa, mais conhecida como Isabel I, a "Rainha Virgem", que já havia sido interpretada, por exemplo, pela lendária Bette Davis em Meu reino por um Amor (The Private Lives of Elizabeth and Essex, 1939), dirigido por Michael Curtiz (de Casablanca).

No filme de Kapur, a história tem início em 1558, quando a rainha católica Maria I, irmã de Elizabeth, econtra-se à beira da morte, acometida por um tumor no útero. Sem opções, ela acaba vendo-se forçada a deixar o trono para sua meia-irmã, e única herdeira ao trono, Elizabeth, filha do rei Henrique VIII com Ana Bolena. Elizabeth econtrava-se presa, acusada de conspirar contra a Coroa. Na época, caracterizada pela Contra-Reforma, ou seja, um movimento reacionário católico contrário à Reforma Protestante iniciada pelos teólogos Martinho Lutero (Alemanha) e João Calvino (França). Elizabeth, além de filha bastarda do rei Henrique VIII e acusada de conspiração, era protestante e, durante seu reinado, Maria I perseguiu os seguidores dessa vertente cristã, matando mais de 300 pessoas, o que acabou lhe rendendo o título de "Maria Sangrenta".

Mesmo assim Elizabeth é coroada, mas, para isso, precisa renunciar oa seu amor pelo plebeu Robert Dudley (Joseph Fiennes, que anos mais tarde interpretaria o Lutero na cinebiografia homônima). A coroação aconteceu em 15 de janeiro de 1559, na Abadia de Westminster, em cerimônia relizada por Owen Oglethorpe, Bispo católico de Carlisle. Logo, Elizabeth é aconselhada a se casar, de modo a produzir um herdeiro e garantir a linha sucessória e assegurar seu reinado. Recebe inicialmente a oferta do príncipe francês Henrique, Duque d'Anjou (Vincent Cassel), que posteriormente revela-se homossexual. Recusando todas as ofertas de casamento, Elizabeth passa então a enfrentar diferentes ameaças ao seu reinado: Thomas Howard, 4º Duque de Norfolk (Christopher Eccleston), juntamente com Mary Stuart (que é apenas mencionada no filme), seus primos católicos, e Maria de Guise (Fanny Ardant), que, conspirando, armam uma aliança com os franceses para derrotá-la e tira-la do trono.

Em 1569 houve então uma rebelião católica no norte da Inglaterra, cujo objetivo era libertar Mary Stuart, casando-a com Tomás Howard, e colocá-la no trono inglês. Vitoriosa, Elizabeth manda executar mais de 750 rebeldes, entre eles o Duque de Norfolk. A Igreja Católica, havia apoiado os rebeldes, pois intentava conter o avanço do protestantismo na Inglaterra. É então que o Papa Pio V, em 1570 publicou uma bula papal chamada Regnans in Excelsis, por meio da qual excomungava Elizabeth/Isabel, declarando-a herética além de "pretensa Rainha da Inglaterra e servente de crime".

Em 1558, Elizabeth propõe o Ato de Uniformidade, no que ficou conhecido como Regulamentação Religiosa de Isabel I, como tentativa de por um fim aos conflitos e disputas entre católicos e protestantes, surgidos após as divisões religiosas ocorridas durante os reinado de Henrique VIII, Edward VI e Maria I. Esta decisão real ficou conhecida como A Revolução de 1559, e definida a partir de dois atos do Parlamento da Inglaterra: inicialmente, o Ato de Supremacia de 1558 reestabeleceu a independência da Igreja da Inglaterra (Anglicana) em relação à Roma (Papa), conferindo a Elizabeth o título de Líder Supremo da Igreja da Inglaterra; em seguida, o Ato de Uniformidade de 1559 estabelecer a forma que a Igreja Anglicana deveria tomar, incluindo o reestabelecimento do Livro de Oração Comum.

No filme, no entanto, o diretor e o roteirista Michael Hirst tomam inúmeras "liberdades" em relação aos acontecimentos históricos, sacrificando os fatos em favor da dramaticidade.

Sobre o affair entre a rainha e Robert Dudley, seu amigo de infância, alguns fatos ficaram de fora do filme. No verão de 1559, Amy Robsart,espoda de Robert, estava sofrendo de uma "doença em um de seus seios" (provavelmente cancer de mama). Robsart veio a falecer em setembro de 1560 em consequência não da doença mas ao cair de uma escada. Contudo, apesar das investigações concluirem que se tratara de um acidente, as suspeitas de que Dudley tramado a morte esposa não se dissiparam. Mesmo assim Elizabeth ainda congitou por muito tempo casar-se com Dudley. Contudo, a forte oposição por parte da nobreza, do clero e da população fez-la demover-se dessa ideia.

Elizabeth concedeu-lhe título de Conde de Leicester em 1564. Em 1578 ele casou-se novamente com Letícia Knollys, mas a monarca, em diversos momentos, fez questão de explicitar seu descontentamento, mesmo tendo decido não casar-se como ele. e um ódio vitalício contra sua nova esposa. Dudley morreu pouco tempo depois da derrota dos eventos narrados no segundo filme (Elizabeth: The Golden Age, 2007).

A Regulamentação Religiosa, por exemplo é simplificada ao ponto de ser mostrada apenas como um complô entre a rainha e alguns membros do parlamento e do clero, em prol da aprovação de suas propostas. O filme, porém, termina de modo magistral, com a cena em que Elizabeth assume de vez a alcunha de "Rainha Virgem", e diz, dando: "Eu estou casado com a Inglaterra".

O segundo filme, por sua vez, retoma a narrativa inciada 9 anos antes com o filme Elizabeth (1998), que lançou sua atriz ao estrelato, lhe rendendo o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Drama, o Bafta de Melhor Atriz e uma indicação ao Oscar na mesma categoria.

Desta vez ambientado no ano de 1585 (portanto 27 anos após os eventos narrados no primeiro filme, que era ambientado em 1558), o filme se concentra no embate entre o rei espanhol Felipe II (interpretado por Jordi Mollà) e a monarca inglesa. Na trama, ele pretende destronar Elizabeth em favor de sua filha, Isabel. Paralelamente, há 2 outras subtramas que se desenrolam: primeiramente, envolvendo monarca escocesa Mary Stuart (interpretada por Samantha Morton), prima de Elizabeth e aspirante ao trono inglês, que aparece encarcerada em seu castelo, por razões que o filme não deixa muito claras; em segundo lugar, um triângulo amoroso envolvendo a rainha Elizabeth, o corsário Walter Raleigh (interpretado por Clive Owen) e a jovem Bess Throckmorton (interpretada por Abbie Cornish), dama de companhia favorita da rainha.

Historicamente, porém, o filme peca pela pouca fidelidade aos fatos. Ei-los: apesar de, no filme, a infanta Isabel de Espanha ter sido interpretada por uma criança, no período em que a narrativa se ambienta (1585), ela já estava com a idade de 20 anos. Outro ponto que causa estranhamento é o fato de, entre um filme e outro, terem se passado 27 anos, e a rainha já tinha então 52 anos de idade, ter envelhecido muito pouco no filme.

Na primeira cena em que o corsário que Walter Raleigh aparece, ele surpreende a corte britânica ao retirar seu casaco, colocando-o sobre uma poça d’água, para que a rainha pudesse passar. Porém, é improvável uma cena como essa tivesse acontecido, dado que havia sempre círculo de soldados a guardar a rainha e que, certamente, não permitiriam que o corsário chegar tão perto da soberana.

No filme, Bess se envolve com Raleigh se descobre grávida perto do meio da narrativa e, portanto, antes do confronto entre as armadas espanhola e inglesa. Todavia, Bess só engravidou de Raleigh em 1591, portanto 3 anos após a vitória da armada britânica. De fato, quando Elizabet descobriu a relação entre Bess e Raleigh, a dama de companhia doi banida da corte, e nisso o filme é fiel aos fatos históricos.

Sobre o motivo do encarceramento de Mary Stuart, o roteiro falha em não explicar com clareza o que levou a monarca à esta condição, e só no final do filme é que somos levados a concluir que ela estaria presa por intentar subir ao trono inglês, destituindo sua prima Elizabeth. A história de Mary é bastante complexa, e isso ajuda a explicar o fato do filme não se deter em destrincha-los.

Mary, que era casada com Henrique Stuart (o Lorde Darnley), fugiu do Castelo de Loch Leven em 1568, após ter sido acusada de traidora e assassina pelo povo escocês por ter se casado com Jaime Hepburn, 4.º Conde de Bothwell, que matara Henrique. Tempos depois, ela conseguiu reunir um exército de 6 mil homens e se encontrou com as forças em menor número de Jaime Stewart em 13 de maio na Batalha de Langside, masfoi derrotada e fugiu para o sul, onde passou a noite na Abadia de Dundrennan, cruzndo o Estuário de Solway para a Inglaterra dentro de um barco pesqueiro, e então desembarcando em Workington, norte da Inglaterra.

Oficiais ingleses a levaram sob custódia preventida em 18 de maio daquele ano para o Castelo de Carlisle. Em julho de 1568, as autoridades inglesas levaram a rainha escocesa para o Castelo de Bolton, em janeiro do ano seguinte, Maria foi transferida para o Castelo de Tutbury, onde foi colocada aos cuidados de Jorge Talbot, 6.º Conde de Shrewsbury, e sua esposa Bess de Hardwick.

No que tange aos planos conspiratórios de Mary Stuart como retratados no filme, é possível encontrar outras deturpações. A tentativa de matar Elizabeth, cometida pelo jovem Anthony Babington, com uma pistola rudimentar, enquanto a rainha orava no altar da Catedral de São Paulo, não é real. Anthony Babington, de fato, planejou esse atentando, mas nunca o realizou, pois foi descoberto antes. Tal ardil foi usado depois como prova no julgamento de Mary Stuart por traição e conspiração.

Maria foi implicada na Conspiração de Babington e foi presa em 11 de agosto de 1586, sendo levada até Tixall e depois para o Castelo de Fotheringhay, chegando em 25 de setembro, e foi colocada sob julgamento em outubro diante um juri formado por 36 nobres pela acusação de traição de acordo com Decreto pela Segurança da Rainha. Suas últimas palavras foram "In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum", ou "Em tuas mãos, ó Senhor, entrego meu espírito".

Já a cena da execução da monarca escocesa, é perfeitamente fiel aos registros históricos disponíveis. Os relatos que chegaram aos nossos dias dão conta de que, de fato, Mary foi despida do pesado vestido preto, revelando uma anágua de veludo e um par de luvas de vermelho-marrom (as cores católicas do martírio) com um corpete de setim preto e enfeites também pretos, abaixando sobre o bloco de madeira, olha para o trono vazio, depois para o machado do verdugo (que se ajoelha aos pés de Mary e pede perdão, ao que ela concede) e, finalmente, aceita resignada seu destino de mártir católica.

Porém, ao contrário do que é narrado no filme, não foi a sua morte a razão para que Felipe II declarasse guerra à Elizabeth, pois a Espanha, aliada à Portugal, deu início à guerra contra a Inglaterra (aliada À Holanda) devido há conflitos anteriores e latentes entre as duas grandes potências da época. A frota naval inglesa, ao contrário do que o filme mostra, não sofreu nenhuma baixa em seus navios, nem mesmo o corsário Walter Raleigh teria tido tamanha importância na vitória inglesa.

Ambos os filmes possuem qualidades ténicas impecáveis (figurinos, direção de arte, maquigem, cenários, fotografia), grandes atuações (especialmente da protagonista), mas que, ao meu ver, perdem pontos pela pouco fidelidade histórica e pela narrativa convencional, repleta de clichés, sendo que o segundo filme emula, em muitos aspectos, a estrutura narrativa do filme anterior.

ELIZABETH (Elizabeth, 1998)
Direção: Shekhar Kapur
Elenco: Cate Blanchett, Geofrey Rush, Richard Attenborough, Daniel Craig, John Guielgud, Christopher Eccleston, Fanny Ardant e Emily Mortimer.
Prêmios:
6 Indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Atriz
Oscar de Melhor Maquiagem.
Bafta e Globo de Ouro de Melhor Atriz.


ELIZABETH: A ERA DE OURO (Elizabeth: The Golden Age, 2007)
Direção: Shekhar Kapur
Elenco: Cate Blanchett, Geofrey Rush, Clive Owen, Samantha Morton, Abbie Cornish e Jordi Mollà.
Prêmios:
3 Indicações ao Oscar, incluindo Melhor Atriz
Oscar de Melhor Figurino.
Indicada ao Bafta e Globo de Ouro de Melhor Atriz.


BÔNUS
Segue abaixo a lista dos filmes (e também algumas séries de TV) nos quais ela foi retratada, bem como das atrizes (há uma ator na lista) que a interpretaram:

1 - Mary Stuart, Rainha da Escócia (Mary of Scotland, 1936 ), no qual Katharine Hepburn interpreta a monarca escocesa, enquanto Florence Eldridge assume o papel de Elizabeth I.

2 - Rainha Elizabeth (Les Amours de la reine Élisabeth, 1912), no qual Sarah Bernhardt interpreta Elizabeth I.

3 - Flora Robinson interpretou a rainha em 3 filmes: Fogo sobre a Inglaterra (Fire Over England , 1937), O Falcão dos Mares (The Sea Hawk , 1940), e Catarina, A Grande (Catherine the Great, 1934).

4 - O Pirata Real (Seven Seas to Calais, 1962), no qual a rainha foi interpretada por Irene Worth.

5 - A Rainha Virgem (Young Bess, 1953), no qual ela foi interpretada por Jean Simmons.

6 - Orlando, A Mulher Imortal (Orlando, 1992), no qual ela foi interpretada pelo ator Quentin Crisp.

7 - Miranda Richardson a interpretou em 1990 na série de TV Black-Adder.

8 - Vanessa Redgrave a interpretou no filme Anônimo (Anonymous, 2011).

9 - Bette Davis interpretou Elizabeth em 2 filmes: Meu Reino por um Amor (The Private Lives of Elizabeth and Essex, 1939) e A Rainha Tirana (The Virgin Queen, 1955).

10 - Glenda Jackson interpretou Elizabeth em 2 momentos: no filme Mary Stuart, Rainha da Escócia (Mary, Queen of Scots, 1971) e na minissérie Elizabeth R. (1971).

11 e 12 - Cate Blanchett foi a última atriz a interpretar Elizabeth em 2 filmes: Elizabeth (Idem, 1998) e Elizabeth: A Era de Ouro (Elizabeth: The Golden Age, 2007).

13 - Judi Dench ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante interpretando-a no filme Shakespeare Apaixonado (Shakespeare in Love, 1998).

14 - Hellen Mirren ganhou o Globo de Ouro pela atuação como a monarca no telefilme Elizabeth I, de 2005.


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