Caché: a geopolítica oculta no cinema de Haneke

Georges (Daniel Auteuil) é um bem sucedido apresentador de TV casado com Anne (Juliette Binoche). Os dois levam uma vida tipicamente burguesa num bairro nobre de Paris. Um dia eles recebem uma fita de vídeo com imagens de sua casa, filmada por uma câmara aparentemente afixada na rua. Depois, do vídeo, eles começam a receber estranhos desenhos, aparentemente feitos por uma criança. Assustados, eles tentam descobrir quem estaria mandando aquele misterioso e sinistro conteúdo, certos de se tratar de alguma forma de ameaça ou coerção. Mas as evidências levam-nos a descobrir que essas ameaças estariam ligadas à um incidente ocorrido na infância de Georges. Ou seja: quem os persegue conhece mais sobre o seu passado do que eles supunham.


Esse é um ótimo filme que precisa ser entendido dentro de dois contextos específicos e complementares: o da paranóia terrorista iniciada com o 11 de Setembro, e as revoltas dos jovens, descendentes de imigrantes africanos moradores das periferias de Paris e de outras cidades francesas, ocorridas entre 2003 e 2006.



Esses dois contextos, apesar de aparentemente desconexos, estão intimamente imbricados, porque remetem à exploração, por parte da Europa e dos EUA, de países da África e do Oriente Médio. Países esses nos quais tem crescido, ao longo das últimas décadas, o fluxo de imigrantes para essas regiões mais desenvolvidas, de um lado, e o islamismo, o ódio à cultura ocidental (vista como a cultura do invasor) e o terrorismo, por outro lado.

De acordo com estudos recentes, cerca de 40% dos cidadãos franceses tem pelo menos um antepassado originário de outro país, especialmente vindos das ex-colônias* na África e no Oriente Médio. Além disso, estima-se que, dentro da população francesa, que é de pouco mais de 64 milhões de habitantes, existam aproximadamente 10 milhões de estrangeiros. Desses estrangeiros, cerca de 3 milhões seriam oriundos no norte da África (como os berberes) e do Oriente Médio (como os árabes), e quase 500 mil teriam origem turca. A população francesa considerada "nativa" nunca foi muito receptiva a esses imigrantes, tendo, em diferentes épocas, surgido movimentos políticos e sociais contrário a eles e favoráveis ao endurecimento das leis de imigração. Contudo, depois dos eventos de 11/09/2001, o quadro se agravou bastante, especialmente para aqueles estrangeiros vindos de países considerados islâmicos ou - de algum modo - associados ao terrorismo. Nesse contexto, os adeptos do islamismo, que na França atual representam mais de 10% da população, foram os mais perseguidos e discriminados. Além disso, esse terrorismo de ideologia islâmica acabou por consolidar um novo tipo de inimigo, uma nova forma de ameaça: sem rosto, sem definição, que pode ser qualquer um. No oceano de pessoas que todos os dias passam por estações de metrô, ruas e aeroportos, quem é que traz na mochila a bomba? Nunca se sabe, pois o terrorista, assim como suas intenções, estão sempre ocultos, escondidos (guarde essa palavra).

No filme, o bem sucedido casal Georges e Anne representam a França (ou a Europa), que no passado invadiu, colonizou e explorou esses países hoje tidos como subdesenvolvidos. Agora, essas antigas "Metrópoles" tem que aceitar o fluxo inverso, representado pelo imigrante oriundo dessas antigas colônias, e todo o ressentimento histórico que ele traz consigo. Quem é o misterioso homem que vigia o casal? O diretor se recusa a dar uma resposta definitiva, mantendo o mistério ao longo do filme, mas seu interesse é, antes de tudo, provocar a reflexão, em vez de gerar suspense. Essa característica é demonstrada pelo título do filme, a palavra francesa caché, que em português significa escondido. Valendo-se de um final inconclusivo, ele explicita a questão - também muito evidente no mundo pós 11/09 - da busca por um culpado, custe o que custar, muitas vezes apenas para satisfazer a necessidade de culpar e punir, e não de se encontrar a verdade os as causas por trás da tragédia. Uma culpa cujo ônus é transferido para alguém com o intuito de proporcionar a si mesmo uma catarse e, ao fim, poder voltar à normalidade e alienação da vida quotidiana. Talvez - a possibilidade de reposta que ele oferece - seja esse imigrante anônimo, invisível aos olhos das elites locais, explorado e marginalizado como mera mão-de-obra pouco qualificada, e que se torna também, em um certo ponto, o possível terrorista, a ameaça impalpável, sempre à espreita. Mas talvez culpá-lo seja também apenas mais uma forma encontrada pelo europeu de subjugá-lo e de explorá-lo, e assim livrar-se de sua própria culpa - e da insônia.

A cena que fecha o filme faz-me lembrar daquela famosa máxima proferida por Josué de Castro e frequentemente atribuída, com equívoco, a Milton Santos: "O mundo se divide em dois grupos: os que não comem e os que não dormem por medo dos que não comem". Até quando os que não dormem continuaram matando os que não comem para recuperar a tranquilidade e o sono perdidos?

CACHÉ
Data de lançamento: 5 de outubro de 2005 (França)
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Elenco: Juliette Binoche, Daniel Auteiul, Annie Giradot e Maurice Bénichou.

Eleito pelos The Times como o Melhor Filme da década de 2001 a 2010.

* Dentre os países que foram colonizados pela França, posso citar como exemplo Senegal, Camarões, Tunísia, Marrocos e Argélia.

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