Caché: a geopolítica oculta no cinema de Haneke
Esse é um ótimo filme que precisa ser entendido dentro de dois contextos específicos e complementares: o da paranóia terrorista iniciada com o 11 de Setembro, e as revoltas dos jovens, descendentes de imigrantes africanos moradores das periferias de Paris e de outras cidades francesas, ocorridas entre 2003 e 2006.
Esses dois contextos, apesar de aparentemente desconexos, estão intimamente imbricados, porque remetem à exploração, por parte da Europa e dos EUA, de países da África e do Oriente Médio. Países esses nos quais tem crescido, ao longo das últimas décadas, o fluxo de imigrantes para essas regiões mais desenvolvidas, de um lado, e o islamismo, o ódio à cultura ocidental (vista como a cultura do invasor) e o terrorismo, por outro lado.
De acordo com estudos recentes, cerca de 40% dos cidadãos franceses tem pelo menos um antepassado originário de outro país, especialmente vindos das ex-colônias* na África e no Oriente Médio. Além disso, estima-se que, dentro da população francesa, que é de pouco mais de 64 milhões de habitantes, existam aproximadamente 10 milhões de estrangeiros. Desses estrangeiros, cerca de 3 milhões seriam oriundos no norte da África (como os berberes) e do Oriente Médio (como os árabes), e quase 500 mil teriam origem turca. A população francesa considerada "nativa" nunca foi muito receptiva a esses imigrantes, tendo, em diferentes épocas, surgido movimentos políticos e sociais contrário a eles e favoráveis ao endurecimento das leis de imigração. Contudo, depois dos eventos de 11/09/2001, o quadro se agravou bastante, especialmente para aqueles estrangeiros vindos de países considerados islâmicos ou - de algum modo - associados ao terrorismo. Nesse contexto, os adeptos do islamismo, que na França atual representam mais de 10% da população, foram os mais perseguidos e discriminados. Além disso, esse terrorismo de ideologia islâmica acabou por consolidar um novo tipo de inimigo, uma nova forma de ameaça: sem rosto, sem definição, que pode ser qualquer um. No oceano de pessoas que todos os dias passam por estações de metrô, ruas e aeroportos, quem é que traz na mochila a bomba? Nunca se sabe, pois o terrorista, assim como suas intenções, estão sempre ocultos, escondidos (guarde essa palavra).
No filme, o bem sucedido casal Georges e Anne representam a França (ou a Europa), que no passado invadiu, colonizou e explorou esses países hoje tidos como subdesenvolvidos. Agora, essas antigas "Metrópoles" tem que aceitar o fluxo inverso, representado pelo imigrante oriundo dessas antigas colônias, e todo o ressentimento histórico que ele traz consigo. Quem é o misterioso homem que vigia o casal? O diretor se recusa a dar uma resposta definitiva, mantendo o mistério ao longo do filme, mas seu interesse é, antes de tudo, provocar a reflexão, em vez de gerar suspense. Essa característica é demonstrada pelo título do filme, a palavra francesa caché, que em português significa escondido. Valendo-se de um final inconclusivo, ele explicita a questão - também muito evidente no mundo pós 11/09 - da busca por um culpado, custe o que custar, muitas vezes apenas para satisfazer a necessidade de culpar e punir, e não de se encontrar a verdade os as causas por trás da tragédia. Uma culpa cujo ônus é transferido para alguém com o intuito de proporcionar a si mesmo uma catarse e, ao fim, poder voltar à normalidade e alienação da vida quotidiana. Talvez - a possibilidade de reposta que ele oferece - seja esse imigrante anônimo, invisível aos olhos das elites locais, explorado e marginalizado como mera mão-de-obra pouco qualificada, e que se torna também, em um certo ponto, o possível terrorista, a ameaça impalpável, sempre à espreita. Mas talvez culpá-lo seja também apenas mais uma forma encontrada pelo europeu de subjugá-lo e de explorá-lo, e assim livrar-se de sua própria culpa - e da insônia.
A cena que fecha o filme faz-me lembrar daquela famosa máxima proferida por Josué de Castro e frequentemente atribuída, com equívoco, a Milton Santos: "O mundo se divide em dois grupos: os que não comem e os que não dormem por medo dos que não comem". Até quando os que não dormem continuaram matando os que não comem para recuperar a tranquilidade e o sono perdidos?
CACHÉ
Data de lançamento: 5 de outubro de 2005 (França)
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Elenco: Juliette Binoche, Daniel Auteiul, Annie Giradot e Maurice Bénichou.
Eleito pelos The Times como o Melhor Filme da década de 2001 a 2010.
* Dentre os países que foram colonizados pela França, posso citar como exemplo Senegal, Camarões, Tunísia, Marrocos e Argélia.
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