O Mundo-Cão

Em 1995 um pequeno grupo de cineastas dinamarqueses, capitaneados por Lars von Trier (Ninfomaníaca) e Thomas Vinterberg (A Caça), criou um movimento cinematográfico chamado Dogma 95. Esse movimento tinha como base um manifesto, que, de acordo com Vinterberg havia sido escrito por ele e Trier em apenas 45 minutos.

O Manifesto Dogma 45 prezava pelo naturalismo, isto é, pelo desprezo aos elementos considerados artificiais do processo cinematográfico, e tinha como regras a câmera sempre na mão, o uso de locações reais, sendo vetado o uso de filmagem em estúdios ou cenários artificiais, a proibição do uso de filtros, truques ou iluminação que altere a cor das imagens, que deveriam ser sempre como as reais, além de outras.

Em essência, era movimento de oposição ao cinema de Hollywood e critica à artificialidade que nele impera. A partir de então o grupo de cineastas signatários desse movimento começou a realizar filmes dentro das normas por eles estabelecidas, dentre os quais, posso destacar Os Idiotas, de Trier, e Festa de Família, de Vinterberg, ambos de 1998. Contudo, é o subversivo musical Dançando no Escuro, que Trier dirigiu em 2000 que é tido como o melhor filme desse movimento, e também aquele que marca o seu apogeu. Isso porque nenhum dos cineastas deu continuidade ao cinema proposto em seu manifesto, acabando por escolher e seguir rumos cinematográficos diferentes.

Lars von Trier - nele é que me deterei agora - é um cineasta extremo: extremamente inquieto, extremamente polêmico, extremamente provocador, extremamente ousado e extremamente talentoso. Em Dogville (2003), ao subverter todas as regras do movimento criado por ele na década anterior, ele criou um filme que é a epítome de seu gênio artístico. E, à maneira do malin génie de Descartes, ele manipula sem piedade e com grande verve a mente do espectador e as técnicas cinematográficas. Ao subverter as bases do Dogma 95, ele aponta para um novo rumo sem, contudo, fazer concessões ao modo hollywoodiano de se fazer cinema.

Sem usar locações reais nem deslumbrantes cenários artificiais, ele filme sua história com surpreendente austeridade, usando apenas riscos de giz no chão tablado de um grande galpão, para representar as casas, as ruas, uma arbusto e até um cachorro. Para compensar tão espartana composição cênica, ele se vale de um roteiro pungente e de um elenco soberbo e afiado, liderado por Nicole Kidman e composto por nomes como Lauren Bacall, Ben Gazarra, Patricia Clarkson, James Caan, Stellan Skarsgard, Paul Bettany, Chloe Sevigny e Harriet Andersson.

Grace (Nicole Kidman) é uma misteriosa moça da cidade grande que, vestindo roupas caras, chega à pequena e esquecida comunidade de Dogville, na época da Grande Depressão, fugindo de criminosos. Inicialmente os habitantes locais rejeitam a moça, temendo os tais criminosos que estariam no seu encalço, mas o jovem Tom (Paul Bettany), tocado por sua condição, acabará por ajudar a bela e indefesa moça. Após convocar a todos para um reunião na capela da vila, ele intercederá em favor de sua protegida e, ao mesmo tempo, colocará em prática um experimento social elaborado em sua mente.

Aqui, cabe assinalar que Tom (alcunha de Thomas Edison Jr.) é um jovem idealista, com um certo complexo de superioridade intelectual, que, crendo-se imbuído da missão de iluminar as mentes menos privilegiadas de seus conterrâneos, tentará manipular toda a situação com o objetivo de provar uma tese. Grace (que demonstrará padecer de outro complexo, o de superioridade moral) será a cobaia usada por ele para demonstrar e ilustrar sua teoria acerca do problema da "aceitação". Em troca de sua permanência em Dogville e da (reticente) complacência e hospitalidade de seus moradores, ela fará pequenos trabalhos para cada um deles.

Trabalhos que, segundo eles, "não precisam ser feitos", mas serão a ela permitido fazer, apenas por condescendência: retirar as ervas daninhas que crescem em torno de um arbusto, fazer companhia a um velho cego, ajudar as crianças nas tarefas escolares, entre outros. Todavia, esse quid-pro-quó banal acabará se transformando num atroz e crescente processo de exploração, escravizando Grace, que se verá submetida até mesmo à condição de objeto de satisfação sexual dos homens da comunidade.

Importa destacar, aqui, a conotação que a cenografia adotada pelo cineasta adquirirá. A ausência de paredes ou de limites concretos que separem as casas, tem função de expressar a hipocrisia e o voyerismo tão comuns nesse tipos de comunidade: o que se está explicitando é uma realidade na qual todos sabem o que acontece na vida de todos, apesar de fingirem nada saber. A fofoca, a calúnia, o falso moralismo, ausência de privacidade, a constante vigilância pública, em lugares como esse, convivem em equilíbrio. Todos julgam-se corretos, morais, justos, bons. O outro é sempre o corrupto, o imoral, o injusto, o incapaz. Cada indivíduo, para acobertar os próprios erros, vale-se do mesquinho artifício de escancarar os erros dos demais.

Neste contexto, o que seria o problema da aceitação proposto por Tom? A aceitação do outro, como ele é, como suas qualidades e seus defeitos? A aceitação de si, sem a negação dos vícios e a exacerbação das virtudes? Essa possibilidade de interpretação torna-se mais evidente quando tomamos como exemplo a dificuldade encontrada por Tom para aceitar e assumir seu amor por Grace, da dona de casa Vera (Patricia Clarckson) em aceitar que seu filho não seja a criança inocente que ela imagina, ou a resistência do velho Jack McKay para aceitar que está cego.

Antes de tentar encontrar as repostas à essas questões (e não garanto que eles serão dadas em meu texto), é pertinente propor outras mais: Até que ponto o ser humano é capaz de, sem a promessa de recompensa, de agir para com outrem com bondade de compaixão? Será que possuímos, verdadeiramente, essa capacidade? Será que somos mesmo seres racionais e civilizados, dotados de senso do senso de coletividade e de capacidade cooperativa? Ou será que não passamos de animais, tentando controlar e disfarçar seus instintos e pulsões primitivos, escondidos atrás de uma máscara de civilidade e racionalidade? Talvez sejam essas as questões mais profundas que o filme coloca - ou talvez sejam apenas questões que perseguem e obcecam este autor que voz fala.

Alguns estudiosos da condição e da natureza humana afirmam que nós só conseguimos permanecer sociáveis e civilizados, acatando as normas e mantendo a ordem, coletivamente estabelecidas, enquanto nossas necessidades estão satisfeitas. Em situações de privação e de escassez, quando nossas necessidades básicas - e portanto físicas, carnais, animais - não são satisfeitas, agimos irracionalmente, violando toda e qualquer imposição ou controle social e moral.

A linha que separa a humanidade dos outros animais é, portanto, muito tênue. Lars von Trier parece querer refutar a desgastada máxima de Rousseau, segundo a qual o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. A máxima Trieriana, aqui, parece ser "o homem nasce um animal, mas a sociedade, em vão, tenta civilizá-lo". Neste ponto, nos deparamos com a seguinte questão: se o homem é um mero animal submetido à uma falsa civilidade, o que é a moral, senão um frágil instrumento coercitivo? Por outro lado, esta perspectiva nos conduz à um certo determinismo social e antropológico, pois colocaria o homem como uma mera vítima de seus instintos e paixões, não deixando espaço para o livre-arbítrio, para a escolha, e assim isentando-o da consequente responsabilidade por seus atos.

Ao final do filme, Trier nos apresenta essa questão na forma de um diálogo entre as personagens de Nicole Kidman e James Caan no qual, qual o já citado complexo de superioridade moral de Grace é posto em xeque. Nos vemos, então, diante de um dilema Nietzschiano: seria a moral uma invenção dos fracos para controlar o fortes, protegendo-se de sua força e domínio? Por que, apesar de todo mal que aquelas pessoas lhe infligiram, Grace se recusa a condená-los ou a odiá-los? Qual a razão dessa insistência dela em tentar compreender as motivações por trás de sua maldade, em vez de encara-los com meras manifestações da maldade que eles realmente possuem?

Voltando ao tema da aceitação, cabe a você, leitor, tanto quanto à mim, enquanto autor, aceitar que talvez não exista uma reposta definitiva ou conclusiva sobre as questões que o filme coloca, suscita ou provoca. Cabe-nos, todavia, aceitar essa nossa dualidade homem-animal, instinto-civilidade, e não levar nossa racionalidade e moralidade tão à sério. Ao ver uma notícia, num jornal, sobre algum crime bárbaro, talvez não seja correto abismar-se e pensar: como um ser humano é capaz disso? O mais sensato seria pensar que tais atos, por mais chocantes que sejam, são na verdade humanos, demasiado humanos. A ordem, o civismo, o altruísmo e a compaixão, são, provavelmente, as exceções.


DOGVILLE
Data de lançamento: 21 de maio de 2003 (França)
Direção: Lars Von Trier
Elenco: Nicole Kidman, Paul Bettany, Patricia Clarckson, Lauren Bacall, Harriet Andersson, James Caan, Stellan Skarsgård.
Narração: John Hurt

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