O anti-Napoleão


Esse filme é mesmo um obra-prima, e Kubrick o realizou como uma espécie de "prêmio de consolação" a si mesmo por conta dos obstáculos impostos pelos estúdios para a realização de sua obra mais desejada e nunca realizada, que seria um filme sobre o próprio Napoleão Bonaparte.

Os "traços" marcantes do grande mestre, ao meu ver, podem ser divididos em dois tipos: 1) estéticos ou plásticos; 2) narrativos. Os traços estéticos próprios de Kubrick são, em primeiro lugar, a preferência por enquadramentos e composições de cena simétricos. Eles estão presentes em Barry Lyndon, mas nesse filme ele empregou um recurso que não costumava usar em seus filmes anteriores, uma vez que ele costuma posicionar a câmera quase sempre num ponto fixo, geralmente um pouco abaixo do nível dos olhos dos atores (os contra-plongées, que seriam sua segunda característica estética constante).

Esse recurso, empregado em Barry Lyndon é o uso de zoom-ins e zoom-outs. Uma cena exemplar, nesse sentido, é aquela onde o protagonista está com um machado cortando lenha, e a câmera, partindo de um close na lenha, vai se afastando e o entorno da paisagem começa a fazer parte da cena. Aí vemos que câmera estava posicionada à uma considerável distancia da cena filmada. À época não haviam câmeras com lentes capazes de focar com tamanha nitidez cenas tão distantes, mas Kubrick conseguiu lentes especiais que haviam sido desenvolvidas, anos antes, pela NASA, para serem usadas em telescópios.

Tal recurso, por sua vez, apesar de estético, tem uma função narrativa e mesmo um significado semiótico: Kubrick nos quer apontar que o filme é uma reconstituição do passado, mas não uma reconstituição fiel, exata - por mais que haja um esforço considerável nesse sentido em todos os grandes filmes - mas sim um interpretação de um passado a partir de uma perspectiva presente, ou seja, a partir de uma visão que, por estar inserida em outro contexto histórico, é não uma visão de um ponto da história, mas sim a visão "a partir de" um ponto de história sobre outro ponto dela mesma. Portanto, uma visão que, por mais que enfoque determinado período e dele se esforce por se aproximar, dele está também irremediavelmente distante.

O grande diretor Martin Scorsese, que também é um cinéfilo inveterado, disse o seguinte sobre Barry Lyndon: "Não estou certo se posso afirmar ter um filme favorito de Kubrick, mas retorno repetidamente a Barry Lyndon. Penso que é por ser uma experiência tão profundamente emocional. A emoção é transmitida através do movimento da câmera, da lentidão do ritmo, na forma como as personagens se movem naquilo que as envolve. As pessoas não o perceberam quando ele estreou. Muitos ainda não o percebem. Simplesmente, na cadência sucessiva de imagens de rara beleza, vemos o caminho de um homem à medida que ele evolui da mais pura inocência até à mais fria sofisticação, terminando numa absoluta amargura - a materialização elementar da sobrevivência. É um filme atemorizante pois a beleza da luz dos candelabros é apenas um manto diáfano sobre a pior crueldade. Mas uma crueza real, do tipo que se encontra todos os dias na sociedade civilizada."

Neste filme, excepcionalmente, Kubrick recorre à quadros de pintores europeus, especialmente franceses, do século XVIII, como inspiração para a composição de muitas cenas. Um exemplo são as obras do pintores William Hogarth, Thomas Gainsboroug e Jean-Antoine Watteau.

Outras características narrativas comuns à Kubrick presentes em Barry Lyndon são:

a) A presença de um protagonista masculino que não pode ser tomado por herói porque possui fortes defeitos morais. Perceba que Barry é um homem arrogante, trapaceiro, mentiroso, que busca todos os meios possíveis para sua ascenção social. É um anti-herói (tal como Alex DeLarge em Laranja Mecânica, ou o Dr. Bill Harford em De Olhos Bem Fechados), do qual o espectador, em vez de admirar-se, sente pena ou desdém - apesar de torcer por ele.

b) O protagonista é um homem que anseia o controle (ou tem a ilusão de controlar) sua vida, seu destino e também aqueles que o rodeiam. Acaba servindo de alegoria ao machismo, ao falocentrismo e ao patriarcalismo, presentes em nossa sociedade. Kubrick se vale de personagens ignóbeis, violentos, psicóticos, pervertidos, para tecer uma dura crítica à esses aspectos "machocêntricos" de nossa sociedade.

c) O protagonista não triunfa no final (como acontece em todos os filmes dele), mas é vencido por algo que ele julgava controlar (os destino, a vida, as circunstâncias, os que o rodeiam). É o golpe final de Kubrick naquelas estruturas que ele denuncia e critica em seus filmes.

d) As figuras feministas, por sua vez, apesar de aparentemente secundárias, tem sempre papel forte na trama: elas são os elementos que perturbam os protagonistas, que neles desencadeiam catarses, mudanças ou perplexidade. Basta lembrar que, em De Olhos Bem Fechados, são as confissões da personagem de Nicole Kidman sobre suas fantasias sexuais inconfessadas que levam seu esposo, interpretado por Tom Cruise, a se lançar em uma Odisseia noturna, em busca de aventuras e colocando sua vida em perigo.

Boa parte da história se passa durante a Guerra dos Sete Anos (1756 e 1763), na qual a França, a Monarquia dos Habsburgos e seus aliados (Saxônia, Império Russo, Império Sueco e Espanha),  se enfrentaram a Inglaterra, Portugal, o Reino da Prússia e Reino de Hanôver,  em uma sucessão de batalhas. Com este fascinante plano de fundo, Kubrick faz, em Barry Lyndon, um brilhante estudo de personagem, acompanhando o Redmond Barry desde a pobreza, enquanto um jovem desprovido de propriedades, nome ou herança, que vive com sua mãe, viúva, desde seu pai morreu, deixando os ambos desamparados, tendo que recorrer à parentes mais abastados para ter onde morar e o que comer; até a acensão social e econômica propiciada pelo casamento com Lady Honoria Lyndon (Marisa Berenson) - aliás, a cena na qual Redmond e Lady Lyndon sutil e mutuamente se cortejam é uma das mais belas do cinema. Neste percurso, pelo qual ele, um irlandês, desafiará um capitão do exército inglês para um duelo, depois fugirá para Dublin, perderá tudo, entrará para o exército inglês, depois desertará e será capturado pelo exército prussiano, sendo forçado a se alistar a ele, depois trabalhará para a polícia da Prússia, investigando um jogador profissional de carteado, tornando-se depois um bon vivant, até se tornar Barry Lyndon e entrar para alta sociedade européia, quando passará a ambicionar um título de nobreza e conhecerá a ruína por conta dessa ambição.

Ao lado outras obras-primas como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e Sangue Negro (There will be blood, 2007), o filme de Kubrick parece louvar a imagem do empreendedor individualista, do homem que, por meio de seus esforços desmedidos, conseguiu proesperar. No entanto, por meio de Barry, o diretor destroça esse conceito, conhecido como self made man, tal como Orson Welles fez anos antes e Paul Thomas Anderson anos depois, respectivamente, nos dois filmes citados. Redmond Barry (Ryan O'Neil), assim como todos os outros protagonistas dos filmes de Kubrick (com exceção de Kirk Douglas em Glória Feita de Sangue e Espartacus), não é um personagem heróico, dotado de qualidades louváveis. Pelo contrário, eles são ambiciosos, violentos, imorais, individualistas, egocêntricos, tal como Charles Foster Kane (Orson Welles) ou Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis).

No entanto, por meio da história de Barry, Kubrick expressa sua visão acerca da história humana e história da evolução e do desenvolvimento da sociedade ocidental. A história de Barry é a metáfora da luta de classes, de como a desigualdade social e econômica molda o comportamento humano e limita seus potenciais. Barry, movido por uma irracional, egoísta e incontrolada sede de acensão social, não pensa duas vezes antes de desafiar a morte o noivo da prima por não aceitar a rejeição dela, nem antes de abandonar seu posto no exército e viajar por milhas se fazendo passar por alto oficial do exército, nem de, ato contínuo, juntar-se às fileiras de outro exército, para depois também abandonar seu posto e trair seus superiores, nem mesmo de, seduzindo uma jovem que é casada com um homem muito mais velho, porém riquíssimo, desposá-la logo após ela tornar-se viúva, e então, depois de casados, passara trata-la com indiferença e frieza.

Redmond Barry é o arquétipo do homem que, buscando sucesso pessoal, passa por cima, explora, seduz, engana. É o arquétipo da nobreza que explorava burgueses e servos; ou da burguesia que hoje explora proletários. É o arquétipo do homem que oprime a mulher e faz dela objeto de posse. É arquétipo do macho que domina, violenta e estupra a fêmea, fazendo de seu corpo uma propriedade. E, assim como fazia Hitchcock com seus protagonistas masculinos igualmente desprovidos de heroísmo, dignidade ou caráter, Kubrick também fornece um pano de fundo psicológico para sua narrativa, ao dar especial destaque à relação de Redmond de com sua mãe e ao peso da falta da figura paterna. Como consequência da criação super-protetora que ele teve de sua mãe, Barry é mimado, não aceita ser contrariado, não sabe lidar com términos, não sabe controlar seus desejos e emoções. É imaturo, infantil, irresponsável. Barry é, inicialmente, inseguro com o sexo oposto, parecendo teme-lo, e depois passa a despreza-lo e vê-lo como objeto ou como meio para se obter algo. Como consequência da ausência de figura paterna, Barry demonstra uma homossexualidade latente, expressa no modo como chora sobre o corpo de seu protetor, Captain Grogan (Godfrey Quigley); ou como chora diante do Chevalier de Balibari (Patrick Magee).

Numa perspectiva Freudiana, Redmond é um jovem que cresce e torna-se um homem sem nunca ter tido um referencial seguro no qual se espelhar. É um Édipo que, por nunca ter tido a chance de simbolicamente "matar o pai", nunca foi capaz de, através de um processo dialético no qual a influência e depois da negação de uma figura masculina forte se alternam, realizar uma síntese e assim construir sua própria identidade ou personalidade. O conflito inicial entre Redmond Barry e o capitão John Quin (Leonard Rossiter), constitui-se em uma representação perfeita do Complexo de Édipo, na qual Quin é a projeção da figura paterna, enquanto sua prima Nora Brad (Gay Hamilton) é a projeção do desejo sexual e da figura materna. Não à toa é que, após "matar" esta figura paterna por conta do desejo sexual por Nora, Redmond, tal Édipo, foge. Por fim, é interessante e absolutamente pertinente notar como Redmond Barry, na medida em que acende em sua condição social, perde sua pureza e sua inocência, tornando-se um homem frio, calculista, individualista, arrogante, hedonista e egoísta. Neste processo, o Édipo kubrickiano vai ganhando ares de Narciso, pela vaidade excessiva, e de Midas, pelo apego às riquezas materiais.

Deixando esses aspectos mais "teóricos" e filosóficos de lado, nos quesitos técnicos o filme é de uma beleza ímpar. Os figurinos, a fotografia, os cenários, a direção de arte, a trilha sonora... tudo contribui para que sejamos quase transportados para o passado. A trilha, por sua vez, segue a linha adotada pelo cineasta desde 2001 - Uma Odisséia no Espaço, de empregar composições já consagradas de compositores clássicos, em vez de contratar um compositor para compor uma trilha original. Isso, ao meu ver, confere ainda mais verossimilhança à obra final que, como eu disse acima, é assumidamente uma "leitura", uma "reinterpretação" do passado.

De fato, depois desse filme, a carreira de Ryan O'Neal entrou em ostracismo. Ele havia atingido o estrelato com Love Story, de 1970, posteriormente participou do filme Lua de Papel, de 1973, no qual contracenou com sua filha prodígio, Tatum O'Neal (a qual foi premiada com o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante). Finalmente, dois anos depois, protagonizou este aclamado filme do mestre Stanley Kubrick.

BARRY LYNDON (1975)
Direção: Stanley Kubrick
Elenco: Ryan O'Neil, Marisa Berenson, Michael Hordern, Patrick Magee, Godfrey Quigley, Gay Hamilton, Hardy Krüger, Leonard Rossiter, Leon Vitali e Arthur O'Sullivan.
Premiado com 4 Oscar: Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte e Melhor Trilha Sonora. Indicado também a Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro.
Premiado com BAFTA  de Melhor Fotografia.
Minha nota: ★★★★★★★★★★


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