Escravidão Sintética

A premissa dos dois Blade Runner é a seguinte: Num "futuro" em que as Empresas Multinacionais se tornaram mais poderosos que os Estados Nacionais, humanos convivem com réplicas sintéticas produzidas por nanotecnologia celular, conhecidos como "replicantes". A democracia capitalista passou a aceitar e a conviver com um novo tipo de escravidão.

Como não são considerados humanos (apesar da semelhança), não possuem direitos, o que permite que sejam escravizados de todas as formas. Uma dessas formas de escravidão é uma certa "vida útil" ou "prazo de validade", com os quais esses seres não humanos já nascem, tornando-sua existência predeterminada, inclusive com data marcada para nascer e morrer. Literalmente. Foram criados para serem escravizados. São dotados de força e resistência supra-humanas e poderiam ser livres, se quisessem. Se tivessem consciência de que são escravos. Se se unissem e se organizassem.



Poderiam ser imortais, mas nasceram fadados a serem escravos das empresas que exploram minérios em planetas distantes, por causa de sua maior "durabilidade". Os replicantes também são estéreis, isto é, incapazes de gerar outros replicantes. Foram criados para não pensar, para não ter sentimentos, não se rebelar. Foram criados para ser simultaneamente mão-de- obra e propriedade privada de uma grande empresa.

No primeiro filme, dirigido por Ridley Scott, Deckard (Harrison Ford), é um "Blade Runner" uma espécie de "capitão do mato", isto, aquele dentre os escravos tinha a tarefa de caçar e capturar os escravos fugidos e rebeldes. A tarefa de Deckard, por seu turno, é rastrear quatro replicantes: Roy Batty (Rutger Hauer), Zhora (Joanna Cassidy), e Pris (Daryl Hannah). Os 4 são de um modelo chamado Nexus-6, produzido pela Corporação Tyrell, que eram usados em mineração interplanetária e que voltaram à Terra ilegalmente. Uma das maneiras que um Blade Runner tem para rastrear um replicante que precisa ser "aposentado" é detectando reações humanas nele, como sentimentos ou emoções.



No segundo filme, de Denis Villeneuve, o papel do "capitão do mato" é o oficial K (Ryan Gosling), um Blade Runner, ao perseguir alguns replicantes, descobre um segredo que pode ameaçar todo o status quo, de provocar uma revolução. Essa descoberta acaba fazendo com que seus caminhos se cruzem com Rick Deckard (Harrison Ford).

O problema é que, assim como Deckard em sua Odisseia de 1982, à medida que cumpre sua missão, K vai adquirindo consciência. Consciência de si, passando a sentir, a pensar, a duvidar, a se emocionar. Consciência de mundo, passando a questionar, a se rebelar, a desobedecer, a romper com o status quo. Em ambos os filmes, Deckard e K lutam para negar e esconder suas reações, cada vez mais "humanas", fruto das dúvidas que vão despertando sua consciência. Mas esse despertar da consciência, uma vez iniciado, não pode mais ser impedido, e as consequências para a ordem estabelecidas são desastrosas. Daí o uso de toda forma de coerção e alienação, para impedir que ela desperte.



No primeiro filme, Deckard e Rachel (Sean Young), uma replicante, descobrem o amor e fogem juntos, pois sabem que, se rastreados, poderão ser "aposentados" por outro Blade Runner. No segundo filme K precisa lutar a dúvida entre esconder o segredo que ele descobriu, ou revela-los aos seus superiores, pois a sua revelação poderia ameaçar tanto a vida de K quanto a ordem estabelecida, o status quo, o "sistema".

Isso porque toda aquela sociedade, baseada na exploração dos replicantes pelas grandes corporações das quais simultaneamente trabalhadores e maquinas, se baseia na crença de que os replicantes não são humanos, não pensam, não possuem sentimentos, vontade ou consciência. Ou seja, não possuem "alma". Portanto, qualquer replicante que ousar pensar, questionar, descumprir normas, se rebelar... é uma ameça ao sistema e precisa ser eliminado. Todo sistema que se baseia na desigualdade e na exploração, é um sistema que, para se sustentar, precisará dispor de todas as formas de manipulação, coerção, repressão, censura, medo, perseguição e mentiras.

Blade Runner 2049 é um filme que se mantém coerente tanto com os conceitos do primeiro filme, quanto com os traços comuns à filmografia de Villeneuve. Em todos os filmes do diretor, o protagonista é alguém está procurando algo, seguindo pistas para desvendar um mistério. Neste percurso, ele entrará em uma realidade desconhecida e estranha e sairá dela completamente modificado ou devastado.

Há um personagem secundário que também adentrará nessa realidade, mas que já a conhece e de certo modo a domina. Ele já passou pela fase do choque, do estranhamento e da perplexidade. Já está moldado e, de certo modo, age friamente aos horrores que presencia. No caso de Blade Runner 2049, este personagem é Deckard. Há também um terceiro personagem que esconde um mistério que é a chave para desvendar - ao menos em parte - a trama que o personagem principal só desvendará no final. No caso de Blade Runner 2049, o personagem em questão está ligado às memórias de infância de K.

Como nos outros filmes, a busca por vingança ou justiça (às vezes com as próprias mãos) é a motivação para a ação de um ou mais personagens na trama. Em Blade Runner 2049 a justiça (ou a crença nela) é o que motiva a líder rebelde Freysa (Hiam Abbass). Mais uma vez, a criança, que aparece nos sonhos de K e está ligada com o segredo que ele havia descoberto, é usada como representação da pureza, da inocência e da bondade, em contraste com o mal circundante que as ronda e ameaça. Esse mal é criado pelos adultos mas mesmo alguns deles não tem suficiente preparo (ou têm cicatrizes e feridas demais) para lidar com esse mundo.

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