Eu me lembro

A primeira coisa que me chama a atenção nessa obra-prima de Alain Resnais é a metalinguagem. Quando indagada sobre o que faz no Japão, a protagonista Elle (Emmanuelle Riva) diz que está fazendo um filme sobre a paz. Depois da primeira noite de amor com Lui, o arquiteto japonês (Eiji Okada), Elle retorna o set onde o tal filme está sendo gravado e as pessoas e objetos que vemos compondo esses bastidores são os personagens coadjuvante da ação que se passa.

Quando estes coadjuvantes se colocam em ação em uma marcha de protesto contra a guerra e contra as armas nucleares, tanto Elle quanto Lui se tornam parte da cena, ora como espectadores que assistem a marcha, ora entrando no meio dela. Mas entrando em sentido contrário, como se buscassem outra outra narrativa, um outro filme, que não seja apenas sobre a paz ou contra as guerras, mas sobre o amor, sobre a morte, sobre fim, sobre esquecimento, sobre memórias...



Este aparente conflito de narrativas na verdade oculta uma relação dialética, na qual o fato objetivo, a realidade concreta, o que aconteceu, se confronta e se completa com a perspectiva subjetiva, a narrativa, o que recordamos. Estas polaridades nos são inicialmente insinuadas no começo do filme, quando Elle diz, sobre o ataque nuclear a Hiroshima, "eu vi de tudo", e Lui responde-lhe "você não viu nada".

Elle não estava no Japão quando as bombas atômicas foram lançadas. Tudo o que ela diz saber sobre esse fato é resultado de narrativas, como livros, reportagens, exposições em museus, documentários. Perto do final, o engano de julgar saber tudo é cometido por Lui. Após ouvir Elle contar sobre os anos que viveu em Nevers, na França, ele interroga-a: "Seu marido conhece essa história?". Ela reponde que não e ele pergunta: "Só eu sei então?". Ela responde que sim, então ele a abraça e diz: "Ninguém mais sabe. Só eu".

Será? Talvez seja verdade, levando-se em conta o modo como o comportamento de Elle muda depois que ela narra ao seu amante os segredos e traumas de seu passado durante a Segunda Guerra na França invadida e anexada pelos nazistas. Como em uma sessão de terapia, Elle realiza sua necessária catarse ao narrar suas dolorosas vivências e acaba, desse modo, reencontrando-se, compreendendo-se melhor.



Narrar implica organizar, colocar em perspectiva, distanciar-se, racionalizar. Do mesmo que a narrativa de Elle ajuda-a a compreender a si mesma e curar suas feridas (ou ao menos a conhecê-las e aceita-las, convivendo melhor com elas e consigo mesmo), o filme de Resnais, esse filme sobre em defesa da paz, anti-bélico, que é também sobre o amor e morte, a memória e os esquecimento, serve também de narrativa para nós, seres humanos, nascidos num mundo que foi profundamente influenciado pelas duas grandes guerras do século XX, possamos entender melhor quem somos.

Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima, Mon Amour, 1959)
Direção: Alain Resnais
Elenco: Emmanuelle Riva e Eiji Okada

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Rainha Virgem

Custer, o falso herói