O martírio de Erika

O cinema de Haneke se constrói invariavelmente sobre a exploração de dois temas: a violência em suas diferentes formas (física, verbal, simbólica, psicológica, cultural) e a oposição e o interno e o externo entendido como espaços ou lugares, nos quais essa violência toma forma.

Em A Professora de Piano, a violência aparece na relação destrutiva da protagonista Erika (na monumental atuação de Isabelle Huppert) com sua mãe (uma figura castradora contruída no molde freudiano clássico), dela consigo mesma, dela com seus alunos e, posteriormente, dela com o jovem Walter Klemmer.

O estudo de personagem que Haneke propõe com seu filme é a dissecação implacável de sua protagonista - e aí temos também um tipo de violência que, na exploração que ele faz do voyerismo do espectador que assiste tudo mais ou menos passivamente, é amplificada.

Erika é uma pessoa fria, dura, ríspida e aparentemente incapaz de demonstrar sentimentos como carinho, amor, afeto. O modo como lida com seus alunos, podando seus talentos em vez de fomentá-los, é o mesmo modo como - somos levados a concluir - sua mãe lidava com sua sexualidade no tempo em que ela entrava na puberdade: o talento alheio é proibido assim como a própria sexualidade.

Logo no início do filme e mãe interpela a filha criticando-a por dedicar seus talento à outras pessoas e adverte-a para que não permita que ninguém a supere ou suplante. Logo, do mesmo modo que a sexualidade da filha, para a mãe, era uma ameaça ao seu desejo de dominação e obsessivo controle; o desabrochar do talento dos alunos também coloca em risco a relação de submissão e o sentimento de inferioridade deles em relação à ela.

E a dureza, a frieza, a indiferença e desprezo demonstrados por Erika, ao longo do filme, vão se revelando como um muro construído por ela para esconder seus desejos mais obscuros. Desejos sexuais que, de tão reprimidos e violentados transmutaram-se em perversões - ao menos, é o como os moralista os definiriam, uma vez que os desejos sexuais de Erika fogem ao que o senso comum estabeleceu como "normal".

Com relutância é que Erika, ao poucos, permite que esse muro seja derrubado ou transposto pelas investidas de Klemmer: ele é o invasor, o elemento externo que adentra o ambiente interno que se quer a todo custo defender e manter incólume, tal qual os jovens sádicos que invadem a paz da família perfeita em Violência Gratuita (Funny Games, 1997 - 2007), ou o tempo, a velhice e o fim, elementos estranhos que invadem a casa (metáfora do amor e da relação construído ao longo de décadas) onde vive um casal de idosos em Amor (Amour, 2012).

É então que Erika sofre uma violência que não pode suportar: a incapacidade de Klemmer em ama-la verdadeiramente, isto é, aceitando-a como ela é, com sua forma estranha de experimentar a sexualidade, em vez daquela figura idealizada que ele construiu, é que fere Erika mais do que todas a violências que ele tenha infligido a si mesma, ou que ela tenha sofrido de sua mãe, ou que ela tenha impingido a si mesma.

Nenhuma dor se compara àquela de ser rejeitados e desprezados por aqueles raros escolhidos a quem, com temor e resistência, permitimos entrar em nosso cômodos mais secretos onde nossas feras inconfessáveis jazem aprisionadas.

A PROFESSORA DE PIANO (La Pianiste, 2001)
Direção: Michael Haneke
Elenco: Isabelle Huppert, Benôit Magimel, Annie Giradot
Prêmios: Grande Prêmio do Festival de Cannes, Melhor Ator e Melhor Atriz no Festival de Cannes.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Rainha Virgem

Custer, o falso herói

Eu me lembro