Não adulterarás!

Em mais um trabalho primorosamente escrito e magistralmente dirigido e interpretado, o cineasta iraniano Asghar Farhadi, junto a alguns de seus atores costumeiros, especialmente o soberbo Shahab Hosseini, nos presenteia com mais um grande filme. Desta vez, em O Apartamento (2016), ele conta a história de Emad (Hosseini), um professor e ator, que junto com sua esposa Rana (Taraneh Alidoosti), se mudam à pressas para um apartamento depois que o prédio onde moravam começa a desmoronar por causa de uma obra num terreno vizinho. Lá, uma tragédia acontecerá, mudando os rumos da vida do casal colocando-a em rota de colisão com a vida de outros personagens que serão revelados ao longo da narrativa.

No filme, Emad e Rana são os protagonistas de uma adaptação teatral de "A morte de um caixeiro-viajante", a clássica e renomada peça escrita por Arthur Miller no final da década de 1940. A peça, por seu turno, conta a história de Willy Loman, um homem já idoso que, amargurado, lamenta os sonhos perdidos enquanto se perde em ilusões de grandeza, evitando a todo custo encarar e aceitar seu próprio fracasso. Sempre acreditando que sua vida um dia irá melhorar e que seus problemas serão resolvidos, ele comete erros atrás de erros, até que sua vida termina de forma trágica.

Não é a toa que Farhadi escolhe a peça de Miller com pano de fundo para a narrativa desse recorte da vida de Emad e Rana. Ambos, o filme de Farhadi e a peça de Miller são profundamente trágicos e pessimistas, e o desenrolar da narrativa de ambas as obras se dá na medida em que as mentiras vão sendo descobertas e a verdade, em sua dureza, vai sendo revelada. Na peça, a mentira a ser desnudada são as ilusões de sucesso e promessas de enriquecimento por meio do esforço em uma sociedade intrinsecamente desigual, nas quais o caixeiro-viajante mergulhou e se alienou a vida inteira, enquanto que a verdade a ser revelada é que Willy fracassou na realização de seus sonhos.

No filme, a mentira está presente naquilo que Babak diz (ou omite?) a Emad sobre a identidade da antiga inquilina do apartamento para o qual ele se muda com Rana; bem como naquilo que Rana diz (ou esconde?) sobre o incidente que sofreu no banheiro. A verdade a ser revelada está na identidade do homem que agrediu Rana e em tudo que o casal Emad e Rana, junto desse misterioso personagem, terão que enfrentar e encarar, nos minutos finais do filme, quando o diretor submete os três (Emad, Rana e o agressor) a um silencioso, porém doloroso exame de consciência cujas que não trará a nem um deles nenhuma forma de redenção ou catarse. Pelo contrário.

Os filmes de Farhadi, a partir de Procurando Elly (2009), estruturam-se sobre um evento traumático e trágico que se abaterá sobre o núcleo central de personagens e que, ao longo do filme, fará com que, tal as camadas de uma cebola, uma série de mentiras são ditas e depois desmascaradas até que, no final, só reste aquela verdade que todos ou alguns tentavam a todo custo ocultar. São filmes nos quais o que não é dito é muito mais importante do é que dito, e nos quais o final sempre reserva uma surpresa que deixará o espectador pasmo ou estupefato. O curioso é que o dramaturgo Miller, em um entrevista antiga que pode ser conferida no Youtube, dizia o seguinte: "Minhas peças falam de uma lei invisível... Sempre o que não vemos é mais importante do que o que podemos ver."



Merece destaque a riqueza de recursos visuais que Farhadi usa para enriquecer sua narrativa com camadas cheias de sutileza: câmera que se demora na porta aberta por Rana antes de entrar no banho, nos deixando tensos e apreensivos; as cenas iniciais, em que um técnico de iluminação ajusta as luzes no palco onde a peça teatral será encenada, que estabelece profundo diálogo com a cena final, na qual a luz incide displicentemente sobre o cômodo do apartamento no qual o desfecho da história ocorrerá; ou edifício que ameaça desabar no início do filme por estar com as fundações comprometidas, e serve de metáfora para o casamento de Emad e Rana, que será ameaçados pelos trágicos eventos narrados, bem como para o sociedade iraniana, cujos valores estão corrompidos pela hipocrisia.

Permeando isso tudo, há ainda a questão do machismo latente, que numa sociedade como a iraniana, caracterizada pela forte presença do Islamismo e por um estado Teocrático, faz com que mulheres como Emad, quando sofrem algum tipo de abuso ou violência de caráter sexual tenham medo de revelar ou mesmo de ir até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência. Ou então, que mulheres com a que habitava o apartamento antes do casal seja vista com maus olhos por ter que se prostituir para sustentar a si e a sua filha, mas o homens casados com que com ela se relacionam não sejam vistos com a mesma reprovação.

Por fim, é importante salientar que, apesar de no Brasil o filme ter recebido o título de O Apartamento, na verdade, o título original, "Forushande" significa "o vendedor", aludindo, numa visão mais óbvia, ao caixeiro-viajante da peça. Porém, quem assistir o filme até o final verá que, na verdade, trata-se de outro "vendedor". E é esse personagem, mais do que Emad, que, tal o Willy (que é casado mas te uma amante) da peça de Miller, percebe que sua vida estava sustentada em mentiras.

O APARTAMENTO (Forushande, 2016)
Direção: Asghar Farhadi
Elenco: Shahab Hosseini, Taraneh Alidoosti e Babak Karimi.
Prêmios: Melhor Ator e Melhor Roteiro no Festival de Cannes
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

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