A palavra e a coisa

O título "O Nome da Rosa" refere-se diretamente a uma das maiores, mais fascinantes e mais insolúveis questões filosóficas: o abismo que separa a palavra e a coisa, o discurso e a realidade. A palavra é o nome dado à coisa. Coisa é o nome (palavra) dado à algo. Mas "algo" também é uma palavra. Dizer, falar, escrever é nomear algo. Lidamos com a realidade por meio de nomes, ou seja, de palavras. Até quando pensamos, pensamos por meio de palavras. Palavras: o, nome, da, rosa. O nome da rosa. Apenas palavras. E até que ponto as palavras dão conta da realidade? Poderiam os nomes abarcar a totalidade da coisa, do ser, do ente que elas nomeiam?

A palavra, por seu turno, passa pela boca, assim como o riso, a comida e -por que não? - o sexo. No mosteiro católico, no qual a história se passa, todos eles - o riso, a comida, o sexo e a palavra - são, ao seu modo, vistos como fonte de pecado e perdição. O contexto histórico no qual a narrativa se desenrola é a Idade Média, em meados do século XIV. A comida, porque leva à gula, pecado capital. O sexo, porque leva à outro: a luxúria. O riso, porque subverte a realidade, questiona a ordem e relativiza a moral. A palavra porque é instrumento do pensar e meio de sua expressão. A palavra comunica todos os pensares, incluindo os potencialmente contestadores. Todos são condenados porque inevitavelmente levam ao rompimento com o ascetismo moral em voga.

Santo Agostinho, um dos mais importantes e influentes filósofos medievais, afirma nas suas Confissões, que também a música, ao despertar no homem o desejo pelo belo, o distrai e o afasta de Deus. O desejo pelo belo, estimulado pela beleza da música é, em ultima instância, um desejo pelo prazer - prazer físico, do corpo, portanto, não da alma. A música e qualquer forma de prazer sensível seriam expressões do mal, caminhos para o pecado, pois o caminho que leva à Deus é o caminho estreito, pedregoso e difícil, e, por isso mesmo, que martiriza o corpo em vez de propiciar-lhe prazer.

No filme, a biblioteca que notabiliza o mosteiro tem uma peculiaridade: seu acesso é proibido. Os livros, cheios de palavras e não-palavras (gravuras) que, assim como elas, são signos. Símbolos que remetem à algo. Como tais, os livros são fonte de conhecimento, mas também uma ameaça, uma vez que o homem, ao acumular conhecimento, pode ser levado a questionar Deus e suas verdades. Palavras: conhecimento proibido. Não por acaso, a biblioteca, localizada em uma das torres do mosteiro, tem o formato de labirinto, que, nas mais diversas culturas aparece em lendas e mitos, como o clássico labirinto de Creta, construído por Dédalo a mando do rei Minos para abrigar o Minotauro. O labirinto, em essência, é uma metáfora do conhecimento ou do caminho até ele. Para sair do labirinto é preciso descobrir o caminho certo entre tantos caminhos errados e enganosos. Em suma, é preciso encontrar a verdade entre mentiras, contradições e ilusões.

A cozinha, onde se prepara o que será dado de comer à boca, é onde ocorrem os encontros sexuais entre um bem alimentado monge e uma faminta moça pobre, que se prostitui em troca de... comida. Na gíria brasileira, poderíamos dizer que, pra ter o que comer, ela se deixa ser comida. Comida e sexo. Gula e luxúria. Pecados.

Na biblioteca, o livro mais proibido é um que leva ao riso: o quase mítico livro segundo da Poética de Aristóteles, perdido desde que a famosa e monumental Biblioteca de Alexandria foi destruída por um incêndio no ano 48 a.C. E é em torno ou por meio de sua leitura que as misteriosas mortes que acontecem no mosteiro serão explicadas. Aliás, por meio deste livro, mas também por meio da boca. Mais precisamente pelo hábito imemorial de umedecer os dedos da língua enquanto se folheia um livro. Este livro, no entanto, além do riso, guarda em suas páginas um outro mal: arsênico, que envenena quem se atreve a lê-lo.

O mundo exterior é onde habita o profano: é o Mundo das Coisas, corruptíveis e enganosas, de Platão; é também a Cidade dos Homens, das tentações da carne, de Santo Agostinho. É pela boca e pelos demais sentidos que esse mundo exterior penetra o mundo interior, onde habita o espírito, a alma, a morada do sublime, a parte de Deus que preenche o homem. Alma é essência, pura e incorruptível, parte do platônico Mundo das Ideias. É parte do ser que poderá adentrar na Cidade de Deus, de Santo Agostinho, após - claro - a morte do corpo e tendo, em vida, evitado as tentações deste. Corpo, coisa. Ideia, palavra.

E o fogo, que a tudo devora com suas incontáveis labaredas em forma de mil línguas é que, na visão do Santo Ofício, purifica a alma consumindo o corpo pecador. O fogo destrói, mas também renova, e por isso também cria: o calor da vida, a chama a vital. Mas é também múltiplo em sua significância, seja na aludindo ao sexo (as paixões que nos consomem, o fogo do desejo, o ardor sexual), ao alimento (os sabores picantes e afrodisíacos, ou o vinho, que “acendem” quem os ingere), ou mesmo no que concerne à palavra (o fogo do conhecimento, a verdade que é clara e quente como o sol, etc).

O filme de Jean-Jacques Annaud, enquanto adaptação do vasto e monumental livro de Umberto Eco, é pobre e limitado. O livro não apenas se embrenha pelas searas interpretativas - ou pelos topos analíticos - acima citados (o tema do conhecimento proibido e as metáforas ligadas à boca e ao fogo) os quais o filme explora competentemente, como também por outros, como a questão do abismo entre e a palavra e a coisa, entre os discursos (filosófico, científico, religioso) e a realidade; ou a questão da obra como amálgama de influências diversas na qual diferentes autores e diferentes tempos dialogam e se fundem; ou ainda a questão de como toda obra artística (literária, cinematográfica, musical) é uma obra aberta, da qual o fruidor (leitor, expectador, ouvinte) é também co-autor, na medida em que ele a interpretará a partir de seu mundo, de seus signos, de seus elementos, e não obrigatoriamente a partir da visão primordial do autor, pois “cada ponto de vista é a vista a partir de um ponto”.

Considerando a deficiência do filme em explorar todas essas possibilidades, ele perde em qualidade, porém, nas searas escolhidas pelo diretor e pelo roteirista dentre as diversas que o livro possibilita, ou seja, naquilo a que se propõem, o resultado é fascinante, exatamente por não ter pretensões em demasia.

O NOME DA ROSA (The Name of the Rose, 2015)
Direção: Jean-Jacques Annaud
Elenco: Sean Connery, Christian Slater, F.Murray Abraham.
Premiado com BAFTA  de Melhor Ator
Minha nota: ★★★★★★★☆☆☆

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