As Invasões Ideológicas

Rémy: Nós fomos tudo: separatistas, partidários de independentistas, soberanistas, soberanistas-associados ...
Pierre: No início, éramos existencialistas.
Dominique: Lemos Sartre e Camus.
Claude: Então Fanon, nós nos tornamos anticolonialistas.
Rémy: Lemos Marcuse e nos tornamos marxistas.
Pierre: Marxistas-leninistas.
Alessandro: Trotskistas.
Diane: Maoístas.
Rémy: Depois de Solzhenitsyn mudamos, tornamo-nos estruturalistas.
Pierre: Situacionistas.
Dominique: Feministas.
Claude: Desconstrucionistas.
Pierre: Há algum “ismo” que não adoramos?
Claude: Cretinismo.

Perto do final do filme canadense As Invasões Bárbaras, o diretor e roteirista Denis Arcand nos brinda com esse diálogo cheio de ironia e uma pitada de amargura. Nele, concentrado, depurado, podemos perceber toda a carga pós-modernista que o filme, em sua visão de mundo e em sua crítica das ideologias, possui. Como Sérgio Paulo Rouanet no seu estudo “As origens do Iluminismo” (1987) descreve, é:
“O pós-moderno é muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade, um sonho da modernidade. É literalmente, falsa consciência, porque consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da modernidade”.
E nenhuma outra expressão definiria melhor o estado de espírito em que o protagonista Remy, diagnosticado com câncer em estado terminal, transpassa durante o filme: parafraseando Rouanet, é uma fadiga crepuscular de uma vida que parece extinguir-se ingloriosamente. Uma vida que, no julgamento do próprio Remy, não passou de uma sucessão de auto-enganos, seja nas ideologias assumidas, seguidas, defendidas com ardor e depois abandonadas e trocadas por outras, nas ilusões perdidas, seja nos amores passageiros que não passavam de sexo vazio regado à boas doses de machismo e omissão marital e ausência paternal.



Não à toa que, ao final da vida, o outrora intelectual, historiador e professor universitário vê-se num quarto de hospital público, sendo precariamente atendido, longe dos filhos, na vida dos quais nunca foi muito presente; sem esposa, uma vez que, após tantas traições sofridas, ela o abandonou; esquecido pelos alunos, ex-alunos e colegas com quais até pouco tempo trabalhava; e vendo o mundo ser cada vez mais dominado por tudo o que ele temia a abominava: o capitalismo quase onipresente, livre mercado impiedoso, a justiça e a igualdade sociais ainda longe de serem alcançadas, a cultura cada vez mais massificada, comercial e descartável, o individualismo e o consumismo como novas religiões, a juventude cada vez mais interessada em enriquecer e ter sucesso do que em mudar ou melhorar o mundo, etc.

O mundo de Remy é o mundo da pós-modernidade, que, de acordo com Juremyr Machado, seria a negação das metanarrativas como explicação da realidade ou da história, é estruturado sobre 3 princípios: a) Crise da ideia da filosofia como construtora da verdade; b) Crise da ideia de certeza; c) Crise das Utopias. E, sendo o Marxismo e o Existencialismo, assim como outros ismos, exemplos de metanarrativas, portanto todas essas 3 crises que caracterizam a pós-modernidade estão sutilmente expressas naquele diálogo supra citado.

"Ao contrário do que se acredita, o século XX não foi tão sangrento. É consenso que as 2 guerras causaram 100 milhões de mortes. Adicione 10 milhões para as Gulags russas. Nos campos chineses, nunca saberemos, mas digamos... uns 20 milhões. Então, 130, 145 milhões de mortos. Não é tão impressionante. No século XVI, espanhóis e portugueses conseguiram, sem câmaras de gás ou bombas, matar 150 milhões de indianos na América Latina. Com machados! Isso é muito trabalho, Irmã. Mesmo que tivessem o apoio da igreja, foi um grande feito. Tanto assim que os holandeses, ingleses, franceses e americanos mais atrasados seguiram seu exemplo e mataram outros 50 milhões. 200 milhões de mortos em tudo! O maior massacre da história aconteceu aqui. E não o mais minimo museu do holocausto. A história da humanidade é uma história de horrores."

Neste monólogo entoado por Remy a certa altura do filme ele expressa sua total descrença, que beira o niilismo. Descrença na Igreja, vista como instituição formada por homens, tão corruptíveis como qualquer outro homem. Descrença na visão dos povos ocidentais, especialmente os europeus, como desbravadores e civilizadores, lavando o progresso e o desenvolvimento à outras partes do mundo. Descrença na URSS enquanto modelo de socialismo marxista, bem como descrença no próprio Marxismo como modelo explicativo da realidade, e do Comunismo como modelo de sociedade justa. Descrença, por fim e profunda, no ser humano. Será mesmo que ele nasce bom a sociedade o corrompe, ou será que o mal é-lhe intrísico?

O personagem de Remy enfretando o câncer que ataca seu corpo e os valores morais pós-modernos que ameaçam os seus, no soberbo filme de Arcand poderia servir de metáfora para o Império Romano enfrentando as sucessivas levas de bárbaros que os varreu do mapa, ou o Feudalismo que viu acensão do burguesia à classe dominante marcar o seu fim, ou o Capitalismo, que vê na promoção de ideais como consumo consciente, igualdade de direitos, organização sindical, ameaças à sua existência. Mas a corrosão das ideologias políticas adquiridas na juventude o que mais incomoda Rémy.

AS INVASÕES BÁRBARAS (Les invasions barbares, 2003)
Direção: Denis Arcand
Elenco:
Fotografia: Lol Crawley
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz
Prêmio de Melhor Ator e Melhor Atriz no Festival de Berlim
Minha nota: ★★★★★★★★☆☆

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