Pioneirismo Dantesco

O Regresso é um filme que consolida esta que eu chamo de a 2ª Fase da obra de Alejandro González Iñárritu. Em seus 3 primeiros filmes, o diretor, em parceria com o roteirista Guillermo Arriaga, se caracterizava por realizar filmes cuja temática e narrativa centravam em torno de histórias aparentemente deconexas, cujo elo se dava a partir de um evento trágico: um acidente automobilístico em Amores Brutos e 21 Gramas, e uma "bala perdida'' que alveja uma turista em um ônibus, no caso de Babel. Poder-se-ia dizer que Iñarritu assumia-se como um maestro do caos.

A partir de Biutiful, no entando, o diretor inicia uma mudança de foco e de estilo - marcando também o início do rompimento da parceria com Arriaga. Em sua 2ª Fase, composta até aqui por 3 filmes (o já citado Biutiful, o premiado Birdman e este The Revenant), o diretor passa a narrar histórias de homens determinados à "dar a volta por cima'', por assim dizer, em suas vidas.


Se em Biutiful tínhamos no personagem Uxbal (Javier Bardem) a figura de um homem tentando conciliar o sentimento de culpa pelo fim do relacionamento e tentando criar os filhos sozinho e desempregado; e se em Birdman, por sua vez, tínhamos no personagem Riggan Thomson (Michael Keaton) a figura de um ator que tivera sucesso interpretando um super-herói numa franquia cinematográfica e que tenta se afirmar como artista produzindo, dirigindo, roteirizando e estrelando uma peça de teatro; em The Revenant temos o extremo: Hugh Gloss, um pioneiro da colonização norte-americana que teve sua família massacrada, restando-lhe apenas seu filho, que depois de ser violentamente atacado por uma fera selvagem e abandonado para morrer por seus parceiros, tenta de todas as formas sobreviver e vingar-se.

O filme é de tirar o fôlego: uma narrativa inquieta e turbulenta, auxiliada por uma câmera que flui naturalmente pelas cenas, dando o expectador a sensação de estar ali, vivenciando os eventos junto com os personagens. A trilha musical e os efeitos sonora amplificam as sensações - por vezes, mesmo no calor do verão brasileiro, eu sentia frio e via-me perdido no meio de toda aquela neve.

Muitos não sabem, mas a história de Glass é real e deu origem ao livro de Michael Punke, que leva o mesmo nome do filme - que é baseado nele. Além disso, essa história já foi contada antes no cinema no filme Fúria Selvagem (Man in the Wilderness, 1971), dirigido por Richard C. Sarafian e protagonizado por Richard Harris. Ambas as adpatações tomam liberdades em relação à narrativa original: no primeiro filme o protagonista se chama Zachary Bass, enquanto no filme de Iñarritu o protagonista tem um fílho mestiço.

Muito tem sido dito, por parte dos envolvidos na realização do filme (especialmente ator e diretor) e dos colunistas especializados em cinema, sobre as dificuldades técnicas enfretadas pela equipe durante as filmagens: a opção por filmar tudo em cenários reais e utilizando apenas luz natural, dispensando o uso de sets em estúdios e de iluminação artificial; o fato das locações escolhidas localizarem em regiões remotas em 2 continentes (Canadá e EUA, na América do Norte, e a Patagônia argentina, na América do Sul) e de as filmagens terem sido realizadas quando estas regiões estavam em pleno inverno; e o fato de Leonardo DiCaprio (que é vegetariano) ter comido o fígado cru de um bisão e dormido numa carçada de animal. Se por um lado, isso acabou dando margem à piadas, por outro, tem levado à uma supervalorização da obra.

A direção de Iñarritu assim como o roteiro são precisos, duros, sem muitos excessos - exceto de algum virtuosismo em alguns enquadramentos e movimentos de câmera. Mas o grande trunfo do filme é sem dúvida o trabalho de Leonardo DiCaprio, que nos presenteia com uma atuação absolutamente vigorosa e visceral. Merece honra também o trabalho dos coadjuvantes Tom Hardy (brilhante), Brad Carter e Domhnall Gleeson, especialmente.

Alguns críticos tem insistido em apontar alguns "defeitos" no filme, como a suposta vilanização que ele faz dos indígenas; a incoerencia do roteiro em colocar o personagem Fitzgerald (Tom Hardy) para cuidar de Glass após do ataque do urso; e a desconecção da narrativa paralela em torno da filha sequestrada do um líder indígena.

Ao meu ver, são apontamentos falhos. Primeiro, porque o roteiro não coloca alguns índios como "bons" e outros como "maus". Os grupos indígenas que atacam os grupos de homens brancos no filme o fazem por motivos claros: na primeira cena, pela posse de peles caçadas em território indígena, e depois em vingança pelo sequestro da filha de um líder tribal.

Segundo, porque a vilania do Tom Hardy só é explícita para o público desde o começo, mas não para os demais personagens, de modo que não é incompreensível que ele tenha sido colocado para cuidar de Hugh Glass - aliás, ele se voluntariou depois que o lider da expedição ofereceu uma recompensa, e além do mais, outros 2 personagens ficaram com ele, sendo o filho mestiço de Glass um deles. Além disso cabe considerar a situação extrema em que todos os personagens se encontram e que não oferece muitas opções a ninguém.

Já a narrativa em torno da filha raptada do cacique se conecta com o restante do filme no ponto referente ao machismo e à misoginia que eram ainda maiores naqueles tempo, especialmente com as mulheres indígenas, uma vez que ela é raptada para ser abusada sexualmente. Isso caba servindo de contraponto à relação que Glass tinha com sua mulher, ao meu ver.

Outra análise equivocada é de André Barcinski na Folha de SP. Segundo ele é "puro nonsense" o fato de Glass ter comido cru o fígado de bisão quando haviam fogueiras ao redor nas quais ele poderia ter feito um "suculento bife". Ora, talvez ele não saiba, mas é um ritual indígena comer partes cruas da caça - ou do inimigo, no caso de tribos antropofágicas - como fígado e coração. Além isso, o fígado cru é fonte de vitamina C, que se perde quando ele é cozido ou assado.

Um ponto que me chamou a atenção é o fato de Iñarritu conseguir realizar um épico sobre a colonização (que de fato foi um invasão seguida de extermínio étnico) norte-americana sem ser revisionista, como é o caso de Dança com Lobos e Um Homem Chamado Cavalo, por exemplo, e sem retratar os índios como bons e puros selvagens (como acontece nos dois filmes citados) ou como selvagens bárbaros e incivilizados (como era comum nos primeiros westerns). Sua narrativa e seu olhar sobre aquele momento de confluência e conflito cultural são bastante sóbrios e realistas.

O REGRESSO (The Revenant, 2015)
Direção: Alejandro González Iñárritu
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Forrest Goodluck, Brad Carter e Domhnall Gleeson
Fotografia: Emmanuel Lubezki
Trilha Sonora: Bryce Dessner, Alva Noto e Ryuichi Sakamoto.
Minha nota: ★★★★★★★★★☆

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