Eros e Psiquê

Esopo, fabulista grego, conta-nos que, certa vez o deus do Amor, Eros (ou Cupido, para os romanos), adormeceu em uma caverna, embrigado pelo deus do Sono, Hipnos. Este era irmão gêmeo de Tanatos, deus da Morte. Ao cair em sono, Eros deixou que suas flechas caíssem, misturando-se à algumas de flechas de Tanatos que estavam no chão da caverna. Quando acordou, Eros recolheu suas flecha, mas algumas flechas de Tanatos acabaram indo junto. Deste modo, Eros passou a portar tanto flechas de amor quanto de morte. A linha que separa amor e morte é, segundo estes mitos, tênue.

Os mitos greco-romanos serviram de inspiração para Freud elaborar alguns conceitos-chave de sua teoria psicanalítica. Baseado em Eros e Tanatos, Freud desenvolveu os conceitos de "estímulo ou pulsão de vida" e "estímulo ou pulsão de morte". Representações psíquicas complexas, as pulsões de vida e de morte seriam, para Freud, algo que nos impele em determinada direção, pois possuem um objeto (Objekt), uma pressão (Drang), uma meta (Ziel) e uma fonte (Quelle).



Eros, arquétipo grego da pulsão de vida, teria a função de unir as partículas, de tornar coeso o que está fragmentado, de amalgamar os pedaços incompletos formando uma substância viva, criando formas cada vez mais complexas, preservando vivo o organismo e garantindo a continuidade da espécie. A Pulsão de Vida desdobra-se em "pulsões do eu", relativas à autoconservação, que se manifestariam principalmente por meio da fome e a sede, e nas "pulsões sexuais", que incluiriam tantos os desejos manifestos, quanto aqueles ocultos, recalcados e sublimados. O amor, a fome, o desejo sexual, seriam motores da existência humana. No sexo, aliás, o êxtase completo depende de que nos percamos no outro, mergulhando, literal e metaforicamente, no ser amado.

Tanatos, arquétipo grego da pulsão de morte, seria o oposto, tendo a função de dispersar em vez de amalgamar, de dividir em vez de unir, de destruir em vez de preservar. Em sua obra "Além do princípio do prazer", Freud afirma que “objetivo da vida é a morte, e remontando ao passado: o inanimado já existia antes do vivo”. Porém, a pulsão de vida e a pulsão de morte não podem ser dissociadas. Andam juntas, pois são opostos complementares, as duas faces de uma mesma moeda, estabelecendo entre si uma relação dialética. Isso porque o verdadeiro amor implica um certo tipo de morte. Amar alguém verdadeiramente obriga-nos a matar uma parte de nosso ego, de nosso individualismo. Amar é recusar o egoísmo em prol do outro. Amar é entregar-se, perder-se no outro, deixando-se de ser um eu à parte, isolado, auto-centrado, passando a ser dois, um orbitando em torno do outro, ambos girando em torno de um eixo comum, que é a vida que ambos compartilham.

Tendo tudo isto em mente, é possível compreender melhor esta nova obra-prima de Paul Thomas Anderson. Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) é um homem completamente auto-centrado, dependente de uma vida baseada em uma rotina meticulosa que dá contorno ao mundo que ele criou para si. Este mundo é habitado por fantasmas, como o da mãe de Reynolds, pela qual este parece nutrir um amor edipiano e para a qual ele costurou um vestido para seu segundo casamento. A certa altura do filme, Reynolds diz que é possível esconder qualquer coisa sobre o forro de um paletó ou vestido. Adiante, ele borda o nome de Alma (Vicky Krieps) em dos vestidos que fez para ela. O que será que ele escondeu naquele vestido que fez para o casamento de sua mãe? Que segredos Reynolds esconde de seu passado e de sua relação com essa mãe da qual ele conserva uma mecha de cabelo escondida no forro de seu paletó? Ou ainda, quais segredos e traumas Reynolds costurou e escondeu sob a máscara que carrega?

Segundo Shakespeare, a vida é "som e fúria". Alma é quem desempenhará este papel na mórbida vida monótona e mecânica de Reynolds. Ela é a representação de Eros, que, com sua flechas de amor e morte, produz caos para recriar um novo cosmos no universo de Reynolds. A pulsão de morte, sozinha, é dispersão, desgregação, e tende ao vazio, à anulação. Se acompanhada da pulsão de vida, passa a ser mudança, transformação, reorganização dos elementos em prol da construção de algo novo, renovado, dinâmico, verdadeiramente vivo. Mas, para isso, é preciso não apenas que Alma abra mão de um pouco de si, matando parte de seu eu, mas que também Reynolds encare um certo tipo de morte, abrindo mão do individualismo, deixando o egoísmo e egocentrismo de lado, de modo a construir junto com Alma um mundo novo para ambos. Amor e morte, como já foi dito, andam lado à lado.

A relação entre Reynolds e Alma, aliás, remete à outra parte do mito de Eros. Psiquê era a mais jovem e mais bela das três filhas de um rei, cujo nome é desconhecido. Preocupado pelo fato de as duas filhas já serem casadas, mesmo sendo menos belas que Psiquê, que permanece solteira, o rei decide consultar o Oráculo de Apolo, que revela-lhe que é destino de Psiquê casar-se com um ser monstruoso. Na verdade o oráculo havia sido induzido por Eros a mando da deusa Afrodite, que tinha inveja da beleza de Psiquê. Vestida de branco, ela é levada ao topo de um penhasco para ser desposada pelo monstro, mas então o vento Zéfiro a carrega até um palácio, onde passa a viver.

Lá ela é desposada por Eros, que se torna seu marido, porém ele nunca revela-se a ela, mantendo-se invisível em sua presença, para que Afrodite não pudesse vê-los juntos. Eles fazem um acordo no qual ela nunca deve pedir-lhe para mostrar-lhe sua face. Entediada, Psiquê decide visitar a casa de seus pais, e lá suas irmãs passam a questiona-la sobre sua vida e seu esposo, instigando-a a quebrar o acordo. Voltando ao palácio, Psiquê espera que Eros durma e, aproximando de seu rosto uma vela, fica admirada com sua beleza. Num descuido, ela deixa pingar uma gota de vela derretida sobre o ombro de Eros, que acorda furioso. Sentindo-se traído, Eros foge dizendo que sem confiança o amor não pode resistir.

Abandonada e triste, Psiquê passa a vagar pelo mundo em solidão, atravessando diversos tormentos colocados por Afrodite em seu caminho. Por fim, dá-se por vencida e cai em sono profundo, entregando-se à morte. Encontrando-a, Eros se apieda de sua amada e pede ajuda a Zeus, que lhe concede permissão para desperta-la usando uma de suas flechas. Assim Psiquê acaba tornando-se imortal e é por fim levada-a ao Olimpo, vivendo a eternidade ao lado de seu amado, ganhando asas de borboleta. Em grego, Psiquê significa tanto alma quanto borboleta, e tanto na mitologia grega quanto na psicanálise, a Psiquê é tomada como representação da Alma.

Alma, no filme de Paul Thomas Anderson, é a amada que acaba desposada por um homem que, por trás de sua aparência rude, insensível, fria, dura e áspera, esconde uma fragilidade e uma ternura que só ela parece enxergar. E para que este Eros revele à esta Psiquê sua face, ela terá que feri-lo, pois ele mesmo recusa-se a deixar-se iluminar pelo amor que ela lhe oferece. Esse amor que, como já foi dito, implica em uma certa dose de morte, de auto-sacrifício, de entrega e de renúncia.

TRAMA FANTASMA (Phantom Tread, 2017)
Direção: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps e Lesley Manville.
6 Indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Ator

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