Uma Mulher contra a Casa Branca

Katherine Graham (Meryl Streep) tornou-se editora-chefe do The Washington Post após a morte de seu marido Phil Graham, sendo, então, a primeira mulher a ocupar tal posto nos EUA - e provavelmente no mundo. No começo da década de 1970, o analista do Pentágono Daniel Ellsberg vazou documentos secretos conhecidos vulgarmente como "Pentagon Papers", um estudo preparado pelo Departamento de Defesa a pedido do então secretário de Defesa, Robert MacNamara. Inicialmente os papéis vão parar nas mãos dos jornalistas do New York Times. Quando este publica os primeiros artigos revelando o conteúdo dos documentos, a Casa Branca entra em ação em consegue que a justiça o proíba de seguir divulgando as informações. Posteriormente o jornal The Washington Post, chefiado por Graham, consegue ter acesso aos documentos. É então que ela, que havia recentemente decidido colocar as ações da empresa na Bolsa de Valores, precisa se decidir se seu jornal irá publica-los ou não, tendo me vista sua amizade de anos com figuras como Robert McNamara, Richard Nixon e John Kennedy e a pressão dos acionistas e investidores.

Realizado ao longo de anos por estudiosos contratados como analistas pelo governo, o documento, intitulado "United States–Vietnam Relations, 1945–1967: A Study Prepared by the Department of Defense", continha 47 volumes e detalhava minuciosamente o envolvimento militar norte-americano no Vietnã desde a Guerra da Indochina (1945-1947) até a Guerra do Vietnã (1964-1967).

A Indochina foi ocupada pela França em 1887, tornando-se parte do Império Colonial Francês no Sudeste da Ásia. Era formada pelo que hoje corresponde ao Vietnam, Laos, Camboja e região chinesa de Guangzhouwan. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando parte da França foi dominada pela Alemanha, a Indochina e demais colônias francesas ficaram sobre da República Francesa de Vichy, aliada dos nazistas, ficando depois sobre sob ocupação japonesa. Em maio de 1941, auge do conflito, teve início uma revolta na qual o Viet Minh, ao mesmo tempo partido e exército comunista liderado pela grande Ho Chi Minh, enfrentaram os invasores franceses e depois os japoneses. As revoltas aumentaram, dando início à guerra, que iria terminar em 1949, com a independência do Vietnã. Os Estados Unidos, como revelaram posteriormente os Pentagon Papers, financiaram os franceses na guerra contra o Viet Minh, arcando com cerca de 78% dos custos.

Em 1954, após o Acordo de Genebra, em plena Guerra Fria, o país divido em 2 Estados: Vietnã do Norte, comunista, dirigido por Ho, e Vietnã do Sul, governado pelo imperador-fantoche Bao Dai, controlado pelos franceses. Sem nenhum interesse nos rumos de seu país, Bảo mudou-se para Paris no mesmo ano, continuando como chefe de estado e colocando Ngô Dình Diem como primeiro-ministro. Diem, que era convertido ao catolicismo, era religioso fervoroso. Em 1955 ele realizou um referendo (que depois se provou ter sido fraudado e manipulado com apoio dos EUA) cujo resultado lhe deu plenos poderes.

Durante seu governo, apoiado militar e financeiramente pelos Estado Unidos, iniciou-se violenta perseguição aos comunistas e budistas vietnamitas. Estima-se que 50 mil comunistas foram executados e outros 75 mil foram presos. Em 1963, protestando contra a falta de liberdade religiosa, o monge budista Thich Quang Duc ateou fogo ao próprio corpo, num ato de autoimolação, em Saigon, no então Vietnã do Sul, comovendo a opinião pública internacional. Posteriormente os estudantes aderiram aos protestos, culminando, em 1963, pela deposição de Diem por oficiais do exército-sul vietnamita. Em 1964 o Vietnã do Norte, atacou o governo fantoche do Vietnã do Sul com ajuda e apoio da população da parte de sul, que, de fato, nunca se viu como diferente a população do norte, uma vez que a divisão do Vietnã em dois países foi uma medida artificial imposta pelos EUA e pela ONU, sobre a qual a população vietnamita nunca foi consultada.

Hoje sabe-se que os EUA lançaram no Vietnã 7 milhões de toneladas de bombas, o que corresponde a 2,5 vezes o volume de bombas lançadas por eles na Segunda Guerra Mundial. Entre 1965 e 1967 o presidente Lyndon Johnson aumentou o número de soldados de 190 mil para 500 mil. Mesmo com um imenso e esmagador poderia militar, muito superior ao dos vietnamitas, o número de baixas dos EUA foi de 2 mil soldados entre 1954 e 1965, 6 mil em 1966 e 11 mil em 1967. O número de vietnamitas mortos, no entanto, é estimado em cerca de 3 milhões. O governo estadunidense, que tinha interesse no controle da região, tanto pela sua localização estratégica (próxima da China, Japão, Índia e Oceania) quando pelos recursos naturais, não via com bons olhos o avanço do comunismo, e fizeram pressão para o país fosse dividido em dois, de modo que eles pudessem manter controle político econômico no sul e, partir de lá, derrubar o governo de Ho Chi Minh, consolidado no norte.



No filme Spielberg não entra nesses detalhes mais espinhosos envolvendo geopolítica, preferindo concentrar seu foco em defender a liberdade de imprensa e a democracia estadunidense, atacando um inimigo já abatido (em especial o ex-presidente Nixon). A guerra é mostrada apenas na cena inicial do filme, que abre ao som da clássica canção Green River, da banda Creedence Clearwater Revival. A Guerra do Vietnã sempre foi um tema caro aos estadunidenses pelo fato de seu poderio militar ter sido sobrepujado por uma nação muito menor mas que, porém, lhe era superior em outros aspectos mais decisivos na arte da guerra, como nos ensinou Sun Tzu.

Hollywood só passou a encarar o assunto de frente no final da década de 1970, em filmes como Amargo Regresso (Coming Home, 1978), O Franco Atirador (The Dear Hunter, 1978) e Apocalipse Now (idem, 1979). Quase todos os grandes cineastas da geração de Spielberg já haviam abordado o assunto, como Hal Ashby e Michael Cimino e Francis Ford Coppola, respectivamente os diretores dos 3 filmes anteriormente citados. Nas décadas seguintes outros os seguiriam, com destaque para Stanley Kubrick, realizador de Nascido para Matar (Full Metal Jacket, 1987) e Oliver Stone, que fez (Platoon, 1986), Nascido em 4 de Julho (Born on Fourth July, 1989) e Entre o Céu e a Terra (Heaven and Earth, 1993).

Spielberg parece querer, aqui, entregar sua visão sobre o conflito. Em vez disso, navega seguro sobre duas ondas do momento: a do empoderamento feminino em alta principalmente nos EUA por conta da série denúncias de abusos cometidos por figurões de Hollywood (também explorada por filmes como favorito ao Oscar deste ano, Three Billboards outside Ebbing, Missouri, que aborda a misoginia e o feminicídio) e a do papel que a imprensa cumpre - ou deveria cumprir - na luta contra a corrupção do poder e pela liberdade de expressão (que rendeu a Spotlight 3 Oscar em 2016). Como notável oportunismo e algum maniqueísmo, roteiro e direção se esforçam por dar papel de destaque à personagem de Meryl Streep, colocando-a como símbolo de mulher na luta contra as pressões do machismo e patriarcado, ao passo que ela e a equipe de seu jornal encarnam os valores da imprensa livre e imparcial. O resultado é um filme esquemático e previsível, apesar de muito bem realizado e que cumpre o que promete.

Todas as cenas em que ela aparece são destinadas a tanto a colocar em evidência o mundo masculino e machista que a rodeia, quando o suposto papel e pioneirismo que ela, enquanto mulher, desempenha. Merecem destaque a cena em que personagem de Sarah Paulson profere um monólogo sobre a coragem da personagem em autorizar que seu jornal publicasse o conteúdo dos documentos, e aquele em que ela desce as escadas da Suprema Corte passando em meio à dezenas de mulheres que passam a olha-la com admiração, cumprem aquele objetivo.

Meryl Streep agarra seu personagem com todas a forças e entrega aqui um de seus melhores trabalhos, numa atuação minimalistas, onde cada gesto de mão, cada olhar e cada inflexão, revela algo e vai, ao longo da história, expressando gradual o empoderamento da personagem. Tom Hanks está ótimo como o Ben Bradley e brilha ao lado de Meryl, não se deixando ofuscar demais por Meryl Streep, cuja personagem o roteiro claramente privilegia. O resto do elenco, todo ele composto por atores e atrizes de grande qualidade, recebe seus momentos de glória, como Bob Odenkirk ganhando closes intensos e diálogos marcantes ao longo do filme.

Bruce Greenwood, que havia interpretado JFK em Treze Dias que Abalaram o Mundo (Thirteen Days, 2000) está mediúnico como Robert McNamara, que fora Secretário de Defesa do governo dos EUA de 1961 a 1968, durante os governos de John F. Kennedy e Lydon B. Johnson. Quem quiser saber mais sobre McNamara e o envolvimento dos EUA no Vietnã, recomendo os documentários Corações & Mentes (Hearts and Minds, 1975), de Peter Davis, e Sob a Névoa da Guerra (The Fog of War, 2003), dirigido por Errol Morris, ambos premiados com o Oscar.

O filme termina com o começo do escândalo Watergate, cuja história já foi retratada no filme o icônico Todos os Homens do Presidente (All the president's men, 1976), com Dustin Hoffman e Robert Redford. Dirigido por Alan J. Pakula, que anos mais tarde fez A Escolha de Sofia (Sophie's Choice, 1982), o filme deu a Jason Robards o Oscar e Melhor Ator Coadjuvante interpretando Ben Bradley.

The Post - A Guerra Secreta (The Post, 2017)
Direção: Steven Spielberg
Elenco: Meryl Streep, Tom Hanks, Sarah Paulson, Bob Odenkirk, Bruce Greenwood e Michael Stuhlbarg.
2 indicações ao Oscar: Melhor Filme e Melhor Atriz

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