Os Oito Humanos


"Eu não conheço aquele negro. Mas eu sei que ele é negro. E isso é tudo o que eu preciso saber."

"Porque é quando os negros estão com medo que os brancos estão seguros."

"Senhores, eu sei que os americanos não estão aptos para deixar uma coisa pequena como a rendição incondicional ficar no caminho de uma boa guerra."

"Homens negros contando o meu dinheiro! Eu odeio isso. O único tipo de pessoa que quero contando meu dinheiro são pequenos caras que usam quipás todos os dias."

"Quando o México envia seu povo, eles não enviam seu melhor [...] Eles estão enviando pessoas que têm muitos problemas. Eles estão mandando problemas para nós. Eles estão trazendo drogas, crimes e estupradores, e alguns deles são boas pessoas."

"Eu vou construir um grande muro - e, acredite, ninguém constrói muros melhor do que eu - e vou fazer isso de um jeito muito barato. Eu vou construir uma grande muralha em nossa fronteira sul, e vou fazer o México pagar por isso. Anote essas palavras."

"As pessoas que estão vindo para este país aos milhões, não aos milhares, aos milhões, e destruindo a estrutura do país. [...] Metade é criminosa; eles estão vindo por amor?"

"Olhe para o rosto dela. Será que alguém vai votar nela? Você pode imaginar que esse será o rosto do nosso próximo presidente? Quero dizer, ela é uma mulher, e eu não deveria dizer coisas ruins, mas na verdade, gente, fala sério..."

"Não importa o que a mídia escreva desde que você tenha uma bela e jovem bunda."

Todas as frases acima, certamente, poderiam ter saído da boca de algum personagem de algum filme de Quentin Tarantino. Em geral, eles são os piores tipos: não apenas criminosos violentos, mas indivíduos racistas, machistas, xenófobos e também ufanistas. Porém, exceto as 3 primeiras, todas as demais frases foram pensadas e proferidas por Donald Trump, atual pre-candidato à presidencia dos EUA.

Tendo esse fato em mente, o novo filme de Tarantino e todas as questões que ele levanta tornam-se ainda mais relavantes, e a importancia de assistir o filme e debatê-lo se firma como inequívoca.

O filme se passa alguns anos depois da Guerra Civil (ou de Secessão), quando os EUA se dividiu em dois lados rivais: o sul, formado pelos estados escravagitas, contra o norte, pró-abolição. O conflito teve inicio quando o estados do sul se uniram, formando os Estados Confederados da América, e declararam sua separação - ou secessão - em relação ao resto do país.

Os estados do sul possuíam economias baseadas no sistema das "plantations", que tinham como características o latifúndio (grandes propriedades de terra), o uso de mão-de-obra escrava, a monocultura (plantio de uma única cultura agrícola) de algodão ou cana-de-açúcar, e a produção voltada para a exportação. Suas elites, as oligarquias rurais, viam no fim da escravidão uma grave ameaça ao seu sistema econômico e, consequentemente, aos seus lucros, uma vez que isso os levaria - obviamente - à necessidade de contratar trabalhadores assalariados.

Assim como no Brasil, a escravidão nos EUA durou aproximadamente 3 séculos e, para que um sistema economico baseado na exploração de trabalho escravo, era preciso que a ideologia por trás da escravidão adquire sutentação na sociedade e na cultura, enveredando-se pelos valores, conceitos e visão de mundo daquelas pessoas. Assim, o racismo, como afirmação de que uma raça é inferior e menos humana que a outra foi se institucionalizando, o que, do ponto de vista prático, era o que levava aquelas pessoas, todas professantes da fé cristã, à conciliar a escravidão e os valores humanos contidos em sua fé. Para eles, naão havia conflito em "amar ao próximo como a ti mesmo" e tratar negros como animais precisamente porque eles viam os negros como animais, não como humanos, não como iguais.

Filmes como o superestimado E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), se passam durante a Guerra de Secessão e seu olhar sobre esse evento histórico é inegavelmente saudosista em relação ao sul escravagista, retratando aquela sociedade como a ideal, e mascarando o modo como, de fato, os negros eram tratados naquele contexto.

Nesse filme, eles parecem felizes com sua condição de seres animalizados e privados de sua liberdade e mesmo essa condição de opressão é mostrada de modo romanceado e, portanto, desonesto. A despeito de suas inegaveis qualidades técnicas e dramaturgicas, é a ideologia e os valores que permeiam o filme de Victor Flemming, que foi premiado com 10 Oscars, que depõem contra ele.

Já o filme de Tarantino é implacável e até mesmo intransigente ao expor, por meio de seus personagens, as mais execráveis facetas humanas. Durante as cercade 3 horas de duração, ofensas racistas, misóginas e xenofóbicas serão ditas aos quatro ventos pelos odiados e odiáveis personagens - que não são apenas 8, como o título sugere.

É o ex-general confederado que não faz questão alguma de esconder seu desprezo pelos negros; a placa no balcão do estabelecimento comercial dizendo que ali não é permitida a entrada de cães ou de mexicanos; ou a mulher, que ao ser interpelada por ter usado o termo "nigger" para se referir a um negro, responde que já usou palavras piores para isso; ou o negro que apesar de ter lutado na guerra civil e ser um soldado condecorado, precisa usar uma carta escrita para ele por Abrahan Lincoln para "legitimar" sua humanidade perante os brancos que insistem e não vê-lo como igual.

Nesse seu ultimo filme até aqui, Tarantino recicla uma velha fórmula já usada em diferentes filmes (como Cães de Aluguel, primeiro trabalho dele na direção) e de gêneros, mas que, para o público atual talvez seja mais conhecida por causa de alguns filmes de terror "adolescente", como as séries Pânico e Eu sei o que vocês fizeram no Verão Passado: as narrativas em torno de um grupo de pessoas presas em um determinado lugar (uma ilha, uma mansão, uma pequena cidade, uma nave espacial...) e, à medida que a história se desenrola, elas precisam descobrir quem é o assasssino ou vilão, antes que todos sejam mortos por ele. No caso de Os Oito Odiados, o desafio é descobrir quem entre eles está fingindo ser quem não é, e tem como objetivo ajudar a criminosa Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) à escapar das mãos e correntes do caçador de recompensas John Ruth (Kurt Russell), que pretende leva-la para que seja enforcada.

Ao final das contas, veremos que as chagas e conflitos que o filme expõe, apesar de antigas, ainda permanecem vivas naquele país. Porém, no frigir dos ovos, veremos que apesar do mundo ter mudado muito de lá pra cá, o ser humano - que cada uma de nós somos - continua o mesmo.

OS OITO ODIADOS (Hateful Eight, 2015)
Direção: Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Tim Roth, Michael Madsen, Bruce Dern, Damian Bichir e Walton Goggins.
Trilha Sonora: Ennio Morriconi
Vencedor do Globo de Ouro e do BAFTA de Melhor Trilha Sonora
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora.

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