A Fúria da Fêmea

George Miller, depois de provar sua versatilidade em filmes tão distintos quanto o drama O Óleo de Lorenzo (1992), a animação Happy Feet (2006) e os outros 3 Mad Max (1979, 1981, 1985), agora coroa sua carreira com essa jóia repleta de possibilidades de leitura e interpretação, merecendo sem dúvidas o título de mestre.

Primeiramente, devemos ter em mente que esse 4º filme da franquia Mad Max é um filme de ação, e como tal, não poderia abrir mão das cenas de perseguição, das explosões, tiros e violência. E nesses aspectos, temos aqui um filme que dificilmente será superado, um verdadeiro marco - e divisor de águas - não só dentro desse gênero, mas no Cinema como um todo. Ele eleva o filme de ação a outro nível, conciliando à perfeição conceitos que alguns mais conservadores insistem em opor: ação e arte, adrenalina e reflexão.

Dito isto, devemos então entender que, por quaisquer temáticas que o roteiro ousar se enveredar, a ação não deve ser abandonada. E as searas pelas quais este Mad Max consegue se embrenhar e desbravar, sem deixar-nos retomar o fôlego por um instante sequer, são muitas: o consumismo, o esgotamento dos recursos naturais, o especismo, o machismo, o patriarcalismo, a misoginia, a cultura do estupro, o falocentrismo.

A abordagem do colapso dos biomas e ecossistemas devido à intensa exploração do recursos naturais, em prol da manutenção de uma sociedade materalista e consumista, é o mais evidente, desde os primeiros filmes da franquia, afinal, essa teria sido a causa do mundo ter se transformado no que vemos nos filmes: um imenso deserto, onde água e - por consequencia - alimentos são raros, o que torna a luta pela sobrevivencia uma tarefa árdua, diária, incansável.

O quanto a predominância do "masculino" (numa acepção mais ampla que a meramente sexual) nessa sociedade contrubui para sua falência na medida que supõe (erroneamente) que o homem tenha o direito de se apossar de tudo - e todos - pode ser, para alguns, mais difícil de enxergar, mas está lá: nas poucas comunidades humanas existentes (Cidadela, Vila Gasolina, Fazenda da Bala), o poder é exercido por grotescas figuras masculinas e patriarcais, que por meio do controle de recursos ali vitais (água, alimentos, combustível, munição), controlam todos à sua volta.

Porém, não apenas a natureza é oprimida pelo julgo do homem (o ser humano e o sexo masculino), mas na medida em que nessa sociedade predominam estruturas e valores patriarcais, machistas e falocêntricos, a mulher se encontra também no papel de oprimida. No filme, podemos ver isso nas mulheres das quais Immortan Joe se apossou: as mais velhas passam os dias sendo ordenhadas para a produção do "mother's milk", enquanto as mais novas compõem o harém para a produção dos "healthy babies" que crescerão e engrossarão as fileiras de "war boys".

Mas a mulher haverá de desempenhar outro papel aqui, pela mente e pela mão de Miller: como representante do sagrado feminino, como encarnação da Pacha Mama (a mãe terra), portadora das sementes, que carrega em si o gérmem da vida, ela será a libertadora, a redentora. E a personagem Imperatriz Furiosa, interpretada com um vigor e uma pulsação fascinantes pela fantástica Charlize Theron, é a personificação gloriosa desse arquétipo - presente em diversas mitologias, de diversos povos, mas que foi suprimida cosmogonia ultra machista e patriarcal da cultura judaico-cristã.

O mito de criação aceito na religião cristã, que narra da história de Adão e Eva, é derivado do mito de criação judaico, uma vez que o Cristianismo é uma religião que surgiu a partir de uma dissidência dentro do Judaísmo. Jesus Cristo - se é que tenha existido - era judeu e teria sido, como de praxe, circuncidado. O que muitos não sabem, no entanto, é que no mito judeu, o criador teria feito não apenas Adão, o homem, de barro, mas também uma mulher, Lilith. Contudo, por não aceitar que Adão ficasse sempre sobre ela no ato sexual, ela teria se revoltado e Deus a castigou, banindo-a para junto dos demônios, onde tornou-se a rainha deles declarando guerra ao Deus e aos homens. É então que ele resolve criar outra mulher, mas para evitar que ela se julgasse superior ao homem, ela foi feita não de barro, mas de uma costela de Adão. Por isso, deveria ser a ele submissa.

Desse modo, o filme de Miller exerce um importante papel ao valorizar a dimensão feminina no cinema e, sendo um cinema um veículo de cultura de massa, na sociedade em geral: a mulher representada por Furiosa não é frágil, porque não é uma Eva, mas uma Lilith. Remanescente da extinta comunidade matriarcal Vuvalini das Muitas Mães, após reencontrar as últimas mulheres pertencentes à esse clã, ela entende qual é a sua missão.

Terá sido ela, um dia, também uma das parideiras do harém de Immortan Joe? São questões que o filme deixa em aberto. Contudo, é nela que reside a verdadeira força do filme, pois, aliado aos conceitos já associados ao feminino (acolher, manter, gerar, preservar), ela possui outros: a fúria, a força, a determinação. Ela é a mulher que não se submete, mas questiona e revoluciona

MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA (Mad Max: Fury Road, 2015)
Diretor: George Miller
Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Rosie Huntington-Whiteley e Hugh Keays-Byrne.
Indicado a 10 Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor.
Minha nota: ★★★★★★★★★★

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