Livrai-nos dos Lobos

"Escute, nada fará sentido para os seus ouvidos americanos. E você vai duvidar de tudo o que fazemos, mas no fim, você entenderá."

Essa frase, dita em certo momento do filme pelo personagem de Benicio Del Toro (magistral) à agente do FBI interpretada por Emily Blunt (incompreendida e subestimada) dá o tom do que o espectador terá ao assistir não só a esse, mas como a qualquer outro filme do diretor Denis Villeneuve: nada nem ninguém é certo ou confiável, toda aparencia engana, nenhum expectativa será correspondida, nenhuma resposta será dada que encerre as questões.


Se tomarmos como exemplos os 3 principais filmes do cineasta (Incendies, Prisioners e Sicario), é possível depurar uma estrutura essencial em sua obra que tentarei rapidamente decompor:

1 - Um personagem principal que irá entrar em uma realidade desconhecida e estranha e que sairá dela completamente modificado ou devastado. No caso de Incendies (2010), os irmãos Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin) e Simon (Maxim Gaudette), que ingressarão em uma jornada para reconstituir a história e sua mãe e por consequencia a deles mesmos. No caso de Prisioners (2013), o pai amargurado e vingativo Keller Dover (Hugh Jackman). Já em Sicario (2015) quem cumpre essa função é a agente Kate (Emily Blunt).


2 - Um segundo personagem que também adentrará nessa realidade, mas que já a conhece e de certo modo a domina. Ele já passou pela fase do choque, do estranhamento e da perplexidade. Já está moldado e, de certo modo, age friamente aos horrores que presencia. No caso de Incendies (2010), é a mãe, a "mulher que canta" (Lubna Azabal). No caso de Prisioners (2013), o policial Loki (Jake Gyllenhaal). Em Sicario (2015) ele é encarnado pelo agente Matt Graver (Josh Brolin).


3 - Um terceiro personagem que esconde um mistério que é a chava para desvendar - ao menos em parte - a trama que o personagem principal só desvendará no final. É o irmão e o pai perdidos que deverão ser encontrados pelos irmãos em Incendies; o tia (Melissa Leo) idosa e misteriosa do principal suspeito em Prisioners; e o ex-promotor mexicano (Benicio Del Toro) em Sicario.

4 - A busca por vingança ou justiça (com as próprias mãos) será o que motivará um ou mais personagens na trama: é a busca da "mulher que canta" pelo homem que a estuprou na prisão, em Incendies; é a caça ao homem que sequestrou sua filha, por parte dos pais em Prisioners; ou a procura do ex-promotor pelo chefão do tráfico de drogas que assassinou cruelmente sua família, em Sicario.

5 - As crianças como representação da pureza e bondade, em contraste com o mal circundante que as ronda e ameaça. Esse mal é criado pelos adultos mas mesmo alguns deles não tem suficiente preparo (ou cicatrizes e feridas) paara lidar com ele. Só mesmo os lobos - que o o personagem de Del Toro cita no final de Sicario - é que tem o necessário knowhow para transitar nessa realidade obscura.


A realidade na qual eles entrarão é sempre impiedosa, intrincada, labiríntica, complexa... No caso de Incencies, a guerra civil no Líbano e todo o contexto de conflitos do Oriente Médio no qual ele é apenas um fio na complexa tecelagem. Em Priosioners, os casos de sequestros de crianças e de pedofilia. Em Sicario, o mundo do narcotráfico, dos cartéis de drogas e da corrupção policial.

Não há heróis nos filmes de Villeneuve, mas apenas vítimas e vilões (que se revelarão vítimas também no final). Todos os personagens são seres profundamente humanos, multifacetados, idiossincráticos, cujas almas sofreram ou sofrerão, ao londo do filme, uma incurável obliteração. Todos estão sujeitos a errar, a ferir a si e aos que amam, a ser amorais, a agir contra seus princípios e - principalmente - a questionar
suas certezas e sua fé.

Por essa razão muitos se frustraram com a personagem de Emily Blunt e se perguntaram qual a função dela no longa. A grande maioria desses, certamente, porque esperavam ver na tela um personagem destemida, infalível, durona - ou "fodona". E não que ela não seja nada disso, mas o ponto é que não é esse o objetivo de Villeneuve.

Ele não quer lançar mais uma Ellen Ripley. Ele quer investigar a permanencia de nossas certezas, crenças e princípios frente à situações de extremo horror e violência (em geral, as maiores vitimas são as crianças, apresentadas sempre em sua vulnerabilidade em relação ao mal que se apresenta tão inevitável). Lhe interessa antes de retratar a força de que somos capazes, explicitar sua pulverização na medida que nossas maiores fraquezas (medo, ódio, rancor, fanatismo...) se revelam em face ao inexorável.

E no final, depois de termos encontrados mais dúvidas do que certezas, mais questionamentos do que respostas, nos deixar perplexos e pensativos.

SICARIO (2015)
Direção: Denis Villeneuve
Elenco: Emily Blunt, Josh Brolin, Benicio Del Toro, Jeffrey Donovan, Daniel Kaluuya e Jon Bernthal.
Fotografia: Roger Deakins
Indicado ao Oscar de Melhor Fotografia, Melhor Trilha Sonora Melhor Edição de Som.
Minha nota: ★★★★★★★★☆☆

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