Instinto Vital


Uma família aparentemente perfeita e coesa, de férias nos Alpes, tem sua estrutura abalada após sobreviver à uma avalanche - este é o mote desse instigante e belo filme. A força maior à qual o título do filme se refere poderá ser interpretada a partir de diferentes perspectivas.

Inicialmente, ela pode ser tomada pela força da natureza, bem como incontrolável e insondável acaso que ela enseja e/ou representa. Enquanto esperam seu almoço num restaurante da estação de esqui, os turistas que ali estão (incluindo a família em questão) não sabem o que lhes aguarda quando a avalanche começa a descer: uma ameaça iminente ou apenas um arrepiante fenômeno da natureza? Estarão eles, do mirante em que se encontram, seguros e à salvo?
               
Posteriormente - e passado o susto - a força maior pode ser tomada em outras significações: nossos instintos mais básicos, que numa situação de perigo iminente, prevalecerão sobre qualquer racionalidade e moralidade.

É aí que a relação entre o casal de protagonista começa a se obliterar, pois enquanto a mãe (movida pelo instinto materno, de proteção à prole) fica junto dos dois filhos para protegê-los, enquanto o pai (movido apenas pelo instinto de autodefesa e sobrevivência) foge, abandonando esposa e filhos.

Finalmente - e não ignorando as duas possibilidades de significação anteriormente expostas - e na medida em que o casal se esforça para se reintegrar e reconstruir os laços afetivos e restabelecer coesão familiar, um outro sentido é dado à essa força maior: o ser humano, enquanto ser social, necessita manter e proteger as relações estabelecidas nesse bojo, afim de garantir a sobrevivência da espécie. A família, como núcleo social básico e vista como meio indispensável à criação dos filhos precisa ser defendida.

Juridicamente, "força maior" é um conceito clássico do Direito, formulado pelos romanos e presente nos códigos jurídicos atuais. O jurista romano Gaio conceituou-a na conhecida máxima "vis major est cui humana infirmitas resistire non potest", que pode ser entendida como que afirmando que força maior seja aquela a que a força humana não pode resistir e, portanto, estaria relacionada a  fatores externos que podem ser de 3 tipos: ordem de autoridades, fenômenos naturais e ocorrências políticas.

Cabe notar como o filme brilhantemente explora as questões envolvendo a masculinidade e os papeis de gênero dentro da nossa sociedade e cultura patriarcais: o pai se mostra incapaz de admitir que fugiu, pois fazê-lo seria assumir sua covardia e assim explicitar o quão falso é o conceito de "macho provedor e protetor". 

E não é apenas esses conceitos que são colocados em xeque no filme. Em uma conversa com uma amiga, a esposa-mãe fica perplexa ao ouvi-la contar sobre seu relacionamento aberto, e, no diálogo entre elas, diversos tabus ligados ao casamento, maternidade e fidelidade são questionados.

Uma cena particularmente interessante é a do falso elogio que ele recebe de uma turista num bar, quando ali se encontrava acompanhado de um amigo: aquele homem que encontrava-se quase emasculado após a discussão com a esposa na noite anterior, começa a recobrar sua autoestima e a sentir-se novamente um "macho alfa". Mas essa ilusão dura pouco. 

Será preciso, posteriormente - e com a conivencia de sua esposa abnegada - encenar um resgate para que ele retorne ao posto de patriarca infalível.

   A cena final do filme, em que a família de protagonistas, acompanhada de outros turistas, caminham em grupo, é emblemática: tal como uma matilha de lobos (machos e fêmeas, alfas e betas...) migrando na neve, guiando suas proles e tentando sobreviver.
FORÇA MAIOR (Force Majeure, 2014)
Direção: Ruben Östlund
Elenco: Johannes Kuhnke, Lisa Loven Kongsli, kristofer Hivju, Clara Wettergren e Vincent Wettergren
Trilha Sonora: Ola Fløttum
Minha nota: ★★★★★★★★☆☆

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