No fundo, no fundo...

Scorsese, que quando criança queria ser padre, faz aqui mais um belíssimo e provocante auto-de-fé, muito semelhante, nas questões que provoca - e que vão além do tema da verdade da fé e de suas manifestações - ao A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988), que ele mesmo dirigiu, cerca de 30 anos atrás. Em essência, ambos tratam da compreensão que se tem da fé que se tem, das escolhas, concessões e sacrifícios feitos em nome dela e do modo como ela é professada e vivida por cada pessoa.

A questão mais pertinente aqui gira em torno da apostasia, que é a negação da fé, tal o apóstolo Pedro que negou Cristo por três vezes antes do galo cantar. Até que ponto sofrer e morrer pela fé para não negá-la é necessário se, ao morrer na cruz Cristo teria pago por todos os nosso pecados? Não seria melhor negar a fé e pecar, sofrendo a culpa como um martírio, mas certo do perdão que o sacrifício do Cristo legou?



Aceitar o pecado, a condição de pecador, é prova de fé, sustenta o narrador. Viver a fé em silêncio, internamente, sofrendo por não poder expressa-la, carregando o fardo do silêncio, é também um martírio, que permite ao fiel purgar-se da apostasia cometida. Além disso, até que ponto a escolha pelo martírio é uma escolha humilde, desinteressada, desprovida de vaidade e egoísmo? Não estaria o mártir tentando igualar-se ao Cordeiro de Deus, comparar-se a ele?

Outra, mais secundária, é a questão da certeza do perdão e sua relação com a impunidade, levando o homem a não evitar o pecado, pois sabe que será perdoado caso arrependa-se. Cria-se então um sujeito incapaz de resistir aos impulsos e que está sempre à procura de absolvição, o que, na moralidade judaico-cristã, leva-o a estar sempre em pecado. O castigo, a punição, o sacrifício, o martírio, tem todos uma mesma função, que é a correção moral por meio da dor ou do exemplo. Essas noções de pecado e perdão não existe nas religiões orientais, com Hinduísmo, Jainismo, Budismo, Sikhismo, etc. Há, por outro lado, as noções de karma, de reenconarnação e de iluminação, onde o sujeito evita as ações que lhe possam criar novos karmas, buscando sempre a elevação moral e espiritual, de modo a atingir a iluminação,seja por meio de repetidas encarnações, seja por meio da meditação,

Essa metafísica baseada em dualismos, em oposições entre corpo e alma, carne e espírito, impuro e puro, profano e sagrado, mundo dos homens e mundo de Deus, que caracteriza as religiões monoteístas que cultuam um deus abraâmico também encontra forte oposição na metafísica oriental, que caracteriza religiões como Hinduísmo, Budismo, Jainismo, Taoísmo e Xintoísmo, nas quais essa visão de mundo e realidade essencialmente dicotômica dá lugar à uma visão holística, de unidade e multiplicidade, de complementaridade e não de hierarquia, nem de oposição.

Aqueles dualismos, aquelas oposições entre corpo e alma, carne e espírito, impuro e puro, profano e sagrado, mundo dos homens e mundo de Deus, na tradição judaico-cristã, leva o homem a negar um dos lados, estabelecendo entre eles uma hierarquia: de um lado o corpo, a carne, o mundo dos homens, profanos, cheios de pecado e corrupção; do outro, a alma, o espírito, do mundo de Deus, puro e incorruptível.



As religiões orientais, por outro lado, são religiões que abraçam a dialética em sua plenitude. Não estabelecem hierarquias entre as dimensões da realidade, pois não concebem uma realdade dividida em dimensões separadas. Em sua visão totalizante, as dimensões se misturam, sem intercalam. Há pureza no impuro, há amor no pecador, o puro esconde impurezas, o silêncio guarda ruídos, o ruído transpassa o silêncio.

Apenas quando, no silêncio da fé que não pode ser manifestada, o padre jesuíta Rodrigues a nega (negando-a apenas exteriormente) ele ouve finalmente a voz do Deus que ele ama, ele fortalece internamente aquela fé aparentemente negada. Ele abraça então a dialética da relação entre interno e externo, espírito e corpo, silêncio e ruído, aparência e essência.

Se Deus é o todo, o uno, como afirmou Plotino, então ele só pode ser alcançados quando aceitamos a realidade em sua totalidade e complexidade.

SILÊNCIO (Silence, 2016)
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Ciarán Hinds, Shin'ya Tsukamoto e Issei Ogata.

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