Adeus, meninas!

Segundo o levantamento feito no Censo 2010, apesar da legislação federal considerar crime a relação sexual com menores de 14 anos (mesmo consentida, a relação é classificada como "estupro consensual"), no Brasil existem cerca de 47 mil meninas com idades de 10 a 14 anos que estão casadas.

Contudo, apesar dessa ser uma prática mais associada às regiões mais atrasadas em termos de acesso à informação e à serviços públicos básicos (como saúde e educação) e distantes dos centros urbanos, ela também tem acontecido nas áreas mais prósperas - e consequentemente mais desiguais - do país.

De acordo com uma estimativa do Unicef baseada em dados colhidos em 2011, o Brasil ocupa o 4º lugar no ranking mundial do total de mulheres casadas antes dos 15 anos. No mundo, seriam cerca de 877 mil mulheres com idades entre 20 e 24 anos que admitiram ter se casado antes dos 15 anos. Todavia, essa projeção não inclui, por ausência de dados, países como Líbia, Omã, Catar, China, Bahrein, Irã, Arábia Saudita, Turquia, Kuait, Tunísia, Emirados Árabes Unidos, Israel, entre outros.

A diferença entre esses matrimônios realizados no Brasil e os mostrados no filme da diretora Deniz Gamze Ergüven, é que no Brasil, não há o peso de tradições religiosas impondo casamento forçado à meninas menores de 16 anos com homens que elas desconhecem.

No Brasil, o grande fator é a existência de famílias ainda vivendo em situação de alta vulnerabilidade econômica e social, geralmente com uma quantidade de filhos que ultrapassa a média das taxas de natalidade e fecundidade registradas. Tudo isso - pobreza, baixa escolaridade, famílias numerosas, habitações precárias e que não oferecem conforto ou espaço - faz com que essas meninas procurem desde cedo uma meio de "escapar" e ter sua independencia e seu espaço. O casamento com homens mais velhos é, geralmente, o único meio que elas conhecem para alcançar esse objetivo.

Na situação retrada no filme, porém, o casamento, em vez de representar uma possibilidade de liberdade ou fuga, representa justamente o oposto, pois, ao serem forçadas a aceitar casamentos arranjados pela família com homens que elas nunca viram, as 5 "graças" terão justamente sua liberdade - ainda que limitada - proporcionada pelo fato não serem mulheres adultas, extinta, afinal, uma vez casadas, terão que assumir o papel de esposas, donas de casas e futuras mães, mesmo que só tenha 13 ou 16 anos.

No entanto, a opressão sofrida pela mulher dentro de uma sociedade machista e patriarcal é evidente e inegável, mesmo que se figure de modos distintos: onde a mulher não possui os mesmo direitos que os homens, a liberdade delas sempre estará nas mãos deles. Filmes como os afegãos Osama (2003) de Siddiq Barmak, e Às Cinco da Tarde (2003) de Samira Makhmalbaf, ou o egípcio Cairo 678 (2011), de Mohamed Diab, são eloquentes e punjentes ao expor esse problema.

Enquanto em um país, existem meninas dispostas a sacrificar sua infancia e adolescencia e se entregar à uma relação com homens em um casamento ilegal, porque vislumbra nele o único meio de melhorar, mesmo que minimamente, sua situação; em outro temos meninas são forçadas a sacrificar sua infancia e adolescencia e se entregar à uma relação com homens em um casamento legal, porque essa é a única maneira de lavar a honra - dos homens - da família.

No filme em questão, no entanto, as 5 protagonistas (Lale, Nur, Ece, Selma e Sonay), ao término do ultima dia letivo, resolvem voltar pra casa, depois da aula, à pé e na companhia de outros meninos da mesma idade. No meio do caminho, param em uma praia e, inocentemente, brincam e se divertem na água. Depois adentramm quintais, roubam algumas frutas, comem, e seguem para casa onde vivem com a avó e um tio. No entanto, o que para elas era apenas diversão inocente, para os olhos da comunidade muculmana tradicional e fundamentalista onde vivem, é um escândalo, uma desonra.

Ao chegar em casa, descobrem que a notícia de seus feitos as precedeu: sua avó e seu tio as esperam furiosos e indignados. Uma a uma, a vó leva para um quarto e verifica se ainda são virgens, Depois, de passar-lhes um "sermão" e explicar-lhes a gravidade do que fizeram, começa a arranjar o casamento de cada uma. 

Assim, a vida das 5 meninas, com idade entre 13 e 16 anos, muda radicalmente da noite para o dia: elas são tiradas da escola, são proibidas de sair à rua, de usar computador, de assistir televisão, de usar as roupas que costumavam usar... entre outras limitações. Inicialmente elas se rebelam contra essa opressão, mas, com o passar do tempo, as mais velhas acabam se resignando e aceitando seu fatídico destino. 

Apenas Lale, a mais nova, se mostra mais resiliente e disposta a resistir até o fim, e acaba planejando uma fuga arriscada para a capital. É a pequena Lale que, assim, assume o papel de "heroína' da narrativa, tornando-se aquela que enfrentará proibições, tabus, reprimendas e ameaças, com o intuito de defender sua liberdade.

Porém, ao final do filme, resta uma indagação: quantas meninas como Lale viveram histórias semelhantes e tiveram força para resistir e conseguiram, no final, triunfar? Histórias como as de Lale  são inúmeras certamente, mas quantas delas tiveram o mesmo desfecho? É possível alimentar alguma esperança de que essa realidade mudará nos próximos anos, de modo que possamos ser otimistas quanto às perspectivas de vida das muitas Lales que existem em países como a Turquia (onde sse passa a história)?

Em suma, não é fácil ser mulher em um mundo - ainda majoritariamente - machista e patriarcal, especialmente se você for pobre e viver em um país subdesenvolvido, ou se você tiver nascido num país onde valores teocráticos ainda vigorem.

AS CINCO GRAÇAS (Mustang, 2015)
Direção: Deniz Gamze Ergüven
Elenco: Güneş Şensoy, Doğa Doğuşlu, Elit İşcan, Tuğba Sunguroğlu e İlayda Akdoğan.
Indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro
Minha nota: ★★★★★★★★☆☆

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