Só os que amam permancem vivos

As lendas sobre vampiros são antigas e controversas: não se sabe, com certeza, onde e quando surgiram. Segundo alguns estudiosos, teriam surgido no leste europeu, por volta da Idade Média - mas podem ser mais antigas do que isso. Considera-se que a figura do vampiro, enquanto personagem da cultura, tem início na literatura, por meio do livro Drácula, do escritor Bram Stocker, de 1897, mas antes já haviam contos e até poesias tratando do assunto, de autores como Heinrich August Ossenfelder, Gottfried August Bürger, Johann Wolfgang von Goethe, Samuel Taylor Coleridge, Lord Byron e John Polidori.

Com o passar dos tempos, os vampiros conquistaram outras mídias, com cinema, especialmente. Contudo, nos últimos anos, os vampiros passaram a ser deturpados, principalmente por meio de uma série literária voltada para o público juvenil que logo ganhou as telas do cinema: a saga Crepúsculo. Nela, os vampiros pareciam-se mais com fadas, pois, em vez de queimar quando expostos ao sol, eles brilhavam.

E esse não foi a única característica tradicionalmente atribuida aos vampiros que foi virada do avesso ou simplesmente ignorada nessa "pós-modernidade": originalmente, as lendas diziam que vampiros só poderiam entrar numa casa se convidados pelo dono, possuem sentidos (tato, olfato, paladar, audição, visão) altamente aguçados, sendo muito sensíveis a estímulos, tem grande magnetismo e poder de sedução sobre os humanos, além de grande agilidade, força e velocidade.

E o filmes como esse Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2015) e Deixa Ela Entrar (Låt Den Rätte Komma In, 2008) tem o mérito de resgatar o verdadeiro vampiro no cinema contemporâneo. Só esse detalhe já seria suficiente para coloca-los acima da supra-citada saga juvenil. Todavia, eles vão além, com seus roteiros, elencos e diretores de elevada qualidade.

Nesse filme temos um casal de vampiros antiquíssimos (em uma diálogo, eles revelam ter passado pela Idade Média, visto a Inquisição, as pragas, conhecido Galileu, Copérnico, Newton..) cujos nomes, Adam e Eve (Adão e Eva, em português), claramente remete ao mito judaico-cristão de criação. Eles vivem separados (ele em Paris, França, ela em Tanger, no Marrocos), apesar de se amarem. Se alimentam de sangue que conseguem - cada um do seu modo - sem precisar atacar nenhum humano. Vivem reclusos em casas repletas de instrumentos musicais antigos (ele) e de livros (ela).

Histórias de vampiros e outros seres inumanos sempre foram usadas para expor e criticar o que nós humanos possuímos de mais essencial e os nosso piores defeitos: nossa indelével mortalidade e inevitável decreptude; nossa tendencia a nos destruirmos e também a destruirmos o que houver à nossa volta; nossa ridícula ilusão de poder e grandeza. Por meio desse casal de vampiros, Jarmusch, digamos, lança mão esses elementos, os recicla e faz um filme fascinante.

Adam é um vampiro entediado com a estupidez humana, que por séculos ele foi testemunha ocular. Está cansado de "viver" e de ver quão tolos são os homens, que ele ironicamente denomina "zumbis", certamente porque são mortos-vivos ambulantes, que seguem suas vidinhas ordinárias sem perceber o quanto são frágeis, o quanto são pasageiros, verdadeiros "cadáveres adiados". Seus únicos heróis, os únicos homens dignos de sua admiração, foram cientista e pensadores que tentaram pensar além da mediocridade, além do senso-comum e da fé cega, mas que foram condenados, humilhados, negados ou mesmo mortos por esses "zumbis" ignorantes: Galileu, Newton, Darwin, Einstein... etc.

Eve, por sua vez, tem um amor à vida - se é isso pode ser dito sobre um ser que não está exatamente vivo - que a leva a deslumbrar-se constantemente frente à livros que lê ou relê, objetos antigos que toca, casais enamorados que contempla, entre outras efemeridades com as quais se defronta. Em certo momento do filme ela diz para Adam que não é a primeira vez que ele entra nessas crises depressivas: "Nós já passamos por isso antes. Lembra? E você perdeu toda a verdadeira diversão: a Idade Média, os Tártaros, a Inquisição, as inundações, as pragas...". O que remete-nos ao outro diálogo, no começo do filme, entre ela e outro vampiro, mais velho, Marlowe (John Hurt), no qual ela pergunta se eles nunca irão revelar a verdade sobre serem vampiros, e o quão divertido seria ver o caos que isso causaria.

Logo, podemos depurar a partir dessa oposição entre os dois amantes atemporais que, enquanto ele é um romântico na acepção original da palavra, com toda a sua carga de melancolia, pessimismo e tragédia, ela é uma hedonista-realista, que ama o mundo como ele (em sua dose de caos e ordem, de beleza e terror) é e anseia por o que de bom e prazeroso a vida pode lhe proporcionar. E como duas partículas subatômicas, uma negativa e outra positiva, elas se atraem exatamente porque se opõem e se complementam, e, mesmo separadas, estarão sempre conectadas de um modo que transcende o senso comum.

Ao final, o diretor nos mostra que esses vampiros não são tão inumanos assim, e que nós humanos, apesar de muitas vezes sermos os verdadeiros monstros, também somos capazes de iluminar, encantar e transcender a condição da matéria vil e efêmera: por meio do amor e da arte, tal qual na cantora que hipnotiza Adam num bar no Tanger, ou o casal de namorados que eles observam no final do filme.

AMANTES ETERNOS (Only Lovers Left Alive, 2014)
Direção: Jim Jarmusch
Elenco: Tilda Swinton, Tom Hiddleston, John Hurt, Mia Wasikowska, Jeffrey Wright e Anton Yelchin.
Minha nota: ★★★★★★★★★☆

Comentários

  1. Belíssimo comentário.
    O filme é mesmo apaixonante e poético. Independente do tema de vampiros, muito prejudicado pela saga Crepúsculo. O bom gosto e a sensibilidade que o diretor revela faz da experiência de ver esse filme, um néctar para os sentidos. E não podemos esquecer da abertura para uma estética da tragédia unida ao belo.
    Impressionante. Também indico o filme para todos os momentos em que precisamos de poesia, beleza e tragédia.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Rainha Virgem

Custer, o falso herói

Eu me lembro