Monstros sem Pátria

Filmes centrados nas histórias de crianças cujas vidas e inocências são devoradas pelo horror da guerra não são raros: dos brutais e colossais Vá e Veja (Idri e Smoti, 1985), de Elem Klimov e a Feiticeira da Guerra (Rebelle, 2011), de Kim Nguyen, aos mais convencionais Esperança e Glória (Hope and Glory, 1987) e Filhos da Guerra (Europa, Europa, 1990).

Este Beasts of no Nation (ainda sem título em português, mas cuja tradução mais adequada seria "Monstros sem Pátria") se irmana aos dois primeiros filmes citados, em sua crueza e no fato de, ao longo de sua narrativa, se ocupar em descrever o processo por meio do qual crianças são cooptadas por grupos armados e transformadas em máquinas de matar.

E nesse ponto, o filme do diretor Cary Joji Fukunaga, estrelado pelos ótimos Abraham Attah e Idris Elba guarda muitas semelhanças com Feiticeira da Guerra: ambas as histórias estão situadas em um país africano que passa por uma guerra civil; ambos os protagonistas tiveram suas famílias dizimadas por grupos armados; ambos são cooptados por milícias clandestinas rebeldes e integrados às suas fileiras; ambos os grupos ao quais serão inseridos possuem líderes carismáticos que se revestem de uma áurea mística e são cultuados por seus soldados; ambos encontrarão entre seus pares um amigo com o qual estabelecerão um vínculo mais estreito; ambos sofrerão algum tipo de abuso sexual.

Contudo, Beast of no Nation erra onde Rebelle acerta: não mantém o foco no seu protagonista (Attah), deviando-o, em certa altura na narrativa para outro personagem (Idris), e, ao fazê-lo, o que era uma narrativa sólida sobre a inocência perdida torna-se um filme oscislante e indeciso, ao tentar abranger um escopo de discussão mais amplo, incluindo questões políticas e geopolíticas muitíssimo complexas.

Essa é a grande falha do filme - um crime de pretensão - que não consegue trilhar essa seara com a mesma desenvoltura com que o fizera naquela à qual, de início, ele parecia dar privilégio. Assim, ao final, o que poderia ser um filme impiedoso sobre a impiedosa máquina de guerra, se transforma numa obra algo hipócrita ao tentar suavizar ou mascarar o que está por trás dos conflitos atuais: os interessos econômicos das grandes potências, que clandestinamente sabotam governos e armam gurpos rebeldes, no intuito de manter seu acesso à reservas de recursos naturais (metais preciosos, combustíveis fósseis, etc).

A ONU, por sua vez, que ao intervir nesses conflitos sob a alegação de manter a paz, de fato serve à interesses que não são globais, nem bilaterais, nem ultranacionais, mas com lideranças, fronteiras e localização claramente definidas: América Anglo-Saxônica e Europa, principalemente. E não é difícil encontrar nos sites de notícias casos de soldados da ONU que abusaram sexualmente de jovens e crianças em países em guerra ou situação de calamidade, como o Haiti, por exemplo. Sendo assim, o modo como o filme equivocadamente (não sei se por má-fé ou ingenuidade) retrata essa organização é seu principal calcanhar de Aquiles.

Outro ponto que me incomoda é o fato de Hollywood sempre insistir em retratar o continente Africano (com seus mais de 50 países e ernome variedade étnica e cultural) sempre sobre o prisma da guerra e da miséria. A despeito de suas qualidades, filmes com este, o já citado Feiticeita da Guerra, Hotel Ruanda (Hotel Rwanda, 2004), O Último Rei da Escócia (The Last King of Scotland, 2006) e Diamante de Sangue (Blood Diamond, 2006) são exemplos mais conhecidos desse tipo predominante de abordagem.

Todavia, enquanto O Último Rei da Escócia segue a linha de usar personagens brancos e ocidentais como as figuras heróicas da narrativa - algo que também pode ser visto em Diamante de Sangue e Um Grito de Liberdade (Cry Freedom, 1987) - outros como Feiticeita da Guerra, Hotel Ruanda e Beasts of no Nation não cometem esse deslize moral. Não há aqui a figura do homem branco e justo a salvar o negro de sua barbárie, como se o negro (e por consequencia a África) fossem os únicos culpados pela sua situação.


BEASTS OF NO NATION (2015)
Direção: Cary Joji Fukunaga
Elenco: Abraham Attah, Idris Elba, Emmanuel Nii Adom Quaye e Kurt Egyiawan.
Premiado com o SAG de Melhor Ator Coadjuvante
Minha nota: ★★★★★★★★☆☆

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