Mundo Imundo

"Ouça-me bem amor
preste atenção
o mundo é um moinho..."

O filme é mudo, de traços simples - os traços de uma criança - mas sua eloquência é impar, sua mensagem ecoa e suas imagens penetram a alma e se fixam na memória.

E as questões que ele provoca são muitas: a crescente mecanização dos meios de produção; a desigualdade na distribuição (cada vez mais nas mão de poucos) e no uso (cada vez menos voltadas à satisfação das necessidades básicas da humanidade) das terras; o crescimento do latifúndio; o desemprego e a desvalorização da mão-de-obra humana; o êxodo rural (migração campo-cidade) e a consequente expansão das periferias (favelização); as desigualdades sociais; a concentração de renda; a incontrolável exploração dos recursos naturais até a exaustão de ecossistemas; a extinção de espécies; a poluição e degradação de solos, rios, mares, atmosfera; a alienação do trabalho no sistema capitalista; o consumismo; o onipresente marketing nos dizendo para comprar e comprar... enfim....



E o menino, após ver seu pai sair do campo (cujos solos estão improdutivos) para tentar conseguir emprego na cidade grande, decide ir atrás e, no caminho, se depara com diferentes situações e personagens, onde todos os problemas acima citados se apresentarão. Primeiro, numa propriedade rural, notadamente um latifundio monocultor que opera num sistema de agronegócio com estrutura tipicamente "fordista".

Em seguida, a matéria-prima (algo semelhante ao algodão) é levada para a indústria, onde é transformada em tecido. Novamente, vemos aqui temos a estrutura de produção fordista em uma linha de montagem típica, que pode remeter-nos à Tempos Modernos, de Chaplin, porém, retratada com mais amargura e menos humor - e isso não é um demérito.

"Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão..."

Da indústria, os rolos de tecidos são transportados de navio, em numerosos contêineres, até cidades mais modernas e flutuantes, para as quais os navios e suas cargas são literalmente "abduzidos" e ali, num processo ultra-moderno, o tecido é transformado em roupas, embalado, e então retorna para as cidades hiper-populosas, poluídas e barulhentas, onde serão cobiçadas e consumidas à preços exorbitantes por aqueles que, à custa de salários baixos e horas de trabalho, participaram dos primeiros estágios de produção.

E o menino segue procurando seu pai e quando pensa tê-lo encontrado, depara-se com centenas de pais iguais aos dele, que chegam na cidade aos montes, todos, certamente, deixaram o campo pelas mesmas razões, assim como filhos e esposas. E meninos como o menino também são muitos: tanto o velho que puxa a carroça com seu cãozinho, quanto o jovem que trabalha na fábrica de tecidos e nas horas vagas é um artista mambembe, provavelmente já foram meninos cujos pais foram para cidade e nunca mais voltaram e, sem outra opção ou perspectiva, acabaram crescendo e seguindo o mesmo caminho.




Mas o filme aponta para um solução: ir contra o sistema, buscar modos alternativos de vida, de consumo, de relações sociais, trabalhistas e de modos de produção.  A arte (a música, o desenho, o cinema) talvez seja o meio mais efetivo de nos re-conectarmos com nós mesmo, com a natureza e nos despir de todo excesso de artificialidade que mais danos que benefício tem proporcionado. Mas, para muitos, isso é mera ilusão, utopia. Já foram engolidos pela lógica brutal da acumulação e da exploração sem fim. Dentro deles, a Fênix da contestação já foi morta pela sombria águia do conformismo.

"Eu fico com a pureza da resposta da crianças
é a vida, é bonita e é bonita..."

O MENINO E O MUNDO (2014)
Direção: Alê Abreu
Indicado ao Oscar de Melhor Animação em Longa-Metragem
Minha nota: ★★★★★★★★★★

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